PREFÁCIO
Francisco Rafael de Pascual, OCSO
PREFÁCIO
Francisco Rafael de Pascual, OCSO
A apresentação de uma tradução para o português do livro Viver com Sabedoria, justamente nos dez anos do lançamento em novembro de 2008, da última edição em língua inglesa do excelente livro de Jim Forest, não deixa de ser um motivo de grande alegria. E, por outro lado, conduz-me a um texto da Sagrada Escritura muito celebrado pelos sábios de Israel:
Radiante e inalterável é a sabedoria; facilmente se deixa ver por aqueles que a amaram e encontrar por aqueles que a buscam. Antecipa-se a manifestar-se aos que a desejam. Quem por ela madruga não se cansará: há-de encontrá-la sentada à sua porta. Meditar nela é prudência consumada, e aquele que não dorme por causa dela depressa estará livre de inquietação. Pois ela própria vai à procura dos que são dignos dela, pelos caminhos lhes aparece com benevolência e vai ao encontro deles, em cada uni dos seus pensamentos.
(Livro da Sabedoria 6, 12-16)
De novo sai ao meu encontro e vejo-a sentada, à minha porta, na forma de um amável convite para contribuir com um prefácio para este livro. Eu não a mereço, é ela que me aborda de novo e sai ao meu encontro nos meus pensamentos.
O Papa Francisco, no seu discurso de 24 de setembro de 2015, no Congresso dos Estados Unidos, referiu-se a Thomas Merton, depois de nomear Abraham Lincoln, Martin Luther King e Dorothv Day. Segundo as suas palavras, todos eles “apostaram […] por construir um futuro melhor” e “com a sua vida plasmaram valores fundantes que permanecem para sempre na alma de todo o povo.” Honrar a sua memória, acrescentava, “ajuda-nos a recuperar, no hoje de cada dia, as nossas reservas culturais”, pois todos eles “contribuem com uma hermenêutica, uma maneira de ver e analisar a realidade.”
O Papa sintetizou, assim, a vida e obra de Merton: “Merton foi, sobretudo, um homem de oração, um pensador que desafiou as certezas do seu tempo e abriu novos horizontes para as almas e para a Igreja; foi também um homem de diálogo, um promotor da paz entre os povos e religiões.”
Deste modo, retrata o essencial; Merton, orante e contemplativo, pensador crítico e por vezes intempestivo, escrutinador dos sinais dos tempos, desbravador de caminhos novos, profeta; artesão do diálogo e da paz entre aqueles que são e sentem-se diferentes (confissões, religiões, culturas, povos).
Aqueles que lerem este livro compreenderão a citação bíblica anterior e aperceber-se-ão de que para viver com sabedoria há que “apostar” também a própria vida, toda a vida, cada um dos seus passos, apesar de às vezes parecerem estranhos, disparatados, sem, sentido, consequência dos próprios erros e do egoísmo que persiste na raiz do ser humano.
Jim Forest vai seguindo as pegadas de Thomas Merton, com paciência e delicadeza, observando não apenas o que Merton faz, mas descortinando, com finura e grande intuição, a obra da sabedoria nele. Muitos acreditam que se alcança a sabedoria no final da vida; mas poucos dão-se conta de que a sabedoria está sempre sentada à sua porta. Jim Forest, pois, descreve quem não quis ser sábio nem se esforçou por sê-lo (e, na verdade, Merton não se empenhou muito na primeira metade da sua vida para ser sábio…). Mas quem conhecer A Montanha dos Sete Patamares – a autobiografia de Merton até ao seu ingresso num mosteiro trapista – ficará convencido de que, misteriosamente, a sabedoria sempre foi de um lado para outro na vida desta pessoa singular porque realmente, e apesar dos seus muitos erros, dúvidas e contradições, Merton merecia-a. A confissão final que Merton faz como resumo da sua vida é que esta nada mais foi do que “misericórdia sobre misericórdia” (outro dos nomes bíblicos da sabedoria).
A personalidade e obra escrita, de Thomas Merton foi amplamente estudada nestes últimos anos, sobretudo, após a publicação dos seus Diários. Merton reservou a edição destes somente após vinte e cinco anos após a sua morte, onde descreve detalhadamente aspetos que apareciam de forma velada em várias das suas obras, muitas das quais escritas em forma de diários, com diferentes nomes. Que pretendia o monge trapista ao lançar-se num gênero tão proceloso como a autobiografia e revelar-se ao mundo como um inovador dentro do ambiente da literatura espiritual reinante no catolicismo do seu tempo?
Foram muitas as explicações que quiseram dar a estas perguntas; mas nos cinquenta anos da sua morte, e depois de acompanhar de perto a sua produção literária posterior, talvez estejamos diante de um novo paradigma mertoniano.
A sua autobiografia monástica transforma-se num revulsivo para ele e para o mundo da literatura católica. O monge oculto da abadia de Gethsemani, no Kentucky, passa a ser o católico mais lido por aqueles anos nos Estados Unidos, E Jim Forest explica admiravelmente porque era e continua a ser assim. Aquilo que realmente interessa agora é tentar mostrar que quando o monge escritor redige a sua autobiografia começa a construir a sua estrutura moral consequente e a visão ética responsável na sua vida, como pessoa “convertida”, monge contemplativo e escritor por vocação. Os Diários não são um exercício literário sem mais, mas uma tomada de posição consciente que assume os riscos da crítica geral, e da autocrítica pessoal. É o que nos parece mais relevante agora. Merton tece com esmero um relato sobre como, mediante uma perigosa travessia, o eu distancia-se do caos do estado inconverso para encontrar a sua realização reconciliado em Deus. Conforme avança a este processo, o eu e o relato vão tornando-se mais coerentes entre si, e os aspetos caprichosos da experiência entrelaçam-se conjuntamente num todo santificado. As páginas do livro de Jim Forest seguem o mesmo itinerário de Merton nos seus escritos, situando-nos diante da imagem da travessia ou viagem do eu para a sua verdadeira identidade e seu lugar espiritual.
Um lugar familiar que Merton procurou sabiamente após a sua conversão monástica não isenta, de dúvidas, contradições, aparentes devaneios e crises de identidade; a sua vida não foi um diálogo pacífico e balsâmico com a sabedoria, sentada sempre à sua porta, esperando-o orna e outra vez, após alguns sobressaltos.
Jim Forest escreve a biografia de Merton tendo lido os seus Diários (algo que Michael Mott não pôde fazer) e, no seu livro, fala-nos com certa amplitude e honradez, como fez Merton, do tema do “enamoramento” de um monge de meia idade, escritor de fama e autor espiritual muito reconhecido. E este monge teve de enfrentar esta encruzilhada vital. Creio que o fez com toda a honradez de que foi capaz. Em primeiro lugar, tentou clarificar o que estava acontecendo e explicá-lo a Margie. E, aos futuros leitores, deixou-nos por escrito um detalhado relato no seu diário, sem silenciar pontos obscuros, ambiguidades, contradições, racionalizações, etc. Não se importou (e foi consciente disso) de entregar-nos um material mais do que suficiente para arruinar o seu prestígio.
Por outro lado, escutou-se a si mesmo com muito cuidado, sem asfixiar as diferentes vozes do seu conflito interior, que não eram poucas e nem sempre harmônicas. E a partir dessa escuta atenta tomou a sua decisão. Reconheceu a sua necessidade da companhia e ternura femininas. Mas, também, o seu temor básico em falsear a própria vida: e pensou que, ao prosseguir com a sua relação, esse falseamento terminaria por acontecer. A contemplação – com a sua necessária dose de solidão – era para ele absolutamente essencial, e provavelmente temeu que esta primazia não fosse viável numa vida partilhada com Margie. Tinha consciência, por outro lado, da notável diferença de idade que existia entre ambos. E, por fim, na decisão última teve muito peso o seu sentido de fidelidade à palavra dada nos seus votos. Assim como a consideração do dano que, uma mudança radical na orientação da sua vida, poderia causar a quem seguia as suas orientações espirituais, e à Igreja em geral.
Ele tinha provocado um incêndio e afirmou-se que deveria tê-lo apagado, quanto antes, de forma responsável. Temeroso da sua vulnerabilidade, decidiu extingui-lo, apesar do receio de estar a cometer um erro irreparável. Até aqui é aquilo que se pode encontrar no diário de Tom, tal como se pode interpretar. Esta constatação poderia ser complementada com aquilo que escreveu noutros lugares, pois talvez isso nos ofereça outras pistas sobre o que pode ter sido a sua autocompreensão da própria crise. Refiro-me à ideia – e ao ideal – de integração, tão presente nos seus escritos, no seu trabalho formativo e no seu magistério oral. Considero que a ênfase nesse ideal se relacionava com as suas próprias dificuldades em atingi-lo, A complexidade do seu temperamento contraditório, como ele o qualificava, constituía uma das fontes de sofrimento, atribuindo a isso as suas somatizações. Quando se empreende uma nova tarefa ou se responde a um desafio, a partir de uma personalidade não suficientemente integrada – dizia – o resultado poderá ser mais ou menos grosseiro. Mas todo o sucesso, por mais parcial que seja, contribui para uma maior integração que conferirá uma maior qualidade à vida futura. A integração é um processo… [Veja-se as conferências do Alasca]. Acredito que Merton reconheceria hoje o caráter provisório do seu modo de enfrentar a crise. Desde logo, lamentaria o que nela houve de inadequado. Não deixaria de referir um certo exagero, revelador da sua insegurança: por exemplo, o comentário que faz após a queima das cartas de Margie como uma emenda, sem matizes, à totalidade do anteriormente vivido. Finalmente, diria que adotou a solução que creio ter sido a melhor dentro das possíveis – ou a menos má. Mas ele sabia muito bem que uma pessoa nem sempre conhece ou reconhece as suas motivações últimas.
Os 18 Poemas de Amor não são bons literariamente falando e parecem refletir a tentativa de Merton por alcançar uma experiência mística, através de um caminho que tardou em reconhecer como errôneo, mas sincero nele, embora consequência de um passado não suficientemente amadurecido, E assim deixou-nos um testemunho admirável de um capítulo da sua vida que é comum a muitas pessoas, inclusive consagradas, que nem sempre reconhecem, mas que conhecem. Os dois anos que medeiam entre o final desta situação e a morte de Merton são certamente pouco tempo. Passado o deslumbramento da viagem a Ásia, como teria reelaborado, reescrito, essa primavera jubilosa e dolorosa de 1966? Que decisões teria tomado sobre o seu. estilo de vida eremítico-monástico e como teria integrado as suas necessidades afetivas? Como sabê-lo? Estaríamos tentados a imaginar algum dos hipotéticos “exfuturos”, como diria Una-muno, ou de fazer uma biografia contrafática, Mas este não é o momento.
Na hora em que vivemos e no contexto atual em que a Igreja aborda muitas questões, através dos seus fiéis e consagrados, Merton continua a apresentar-se como um testemunho enriquecedor, porque ele também, viu-se nas “periferias” do seu ser, nas “contradições” da sua formação e da sua biografia, nas “dúvidas” e diante da questão fundamental: porque foste para um mosteiro e porque permaneces nele ao fim de tantos anos?
Porque a Sabedoria está sempre sentada à tua porta.