Textos Essenciais › 06/12/2016

Uma vida livre de preocupações

Thomas Merton

Copyright of the Merton Legacy Trust.

Used with Permission.

Tradução: Dom Alexandre de Andrade OSB

Mosteiro de São Bento de São Paulo

Este artigo foi transcrito de uma fita gravada de uma conferência que o Padre Luís Merton deu ao noviciado do Mosteiro de Gethsemani em 20 de Agosto de 1965, antes de sua partida para o Eremitério. Algumas observações iniciais de interesse somente da audiência presente foram omitidas.

Não estou chorando, sinto muito. Quisera eu derramar uma lágrima, mas parece que isso não vai acontecer… Muito obrigado por todos os cartões e mensagens que todos escreveram e também pela sua arte.1 Estas conferências continuarão: todos os Domingos exceto o dia de recolhimento, a menos que eu mande um aviso. Quero dizer, a menos que os monstros me peguem. Precisam ver as criaturas terríveis que há por aqui – seis metros de altura. O Padre Roger está decepcionado por não termos uma procissão ao Eremitério, com uma cruz processional, acólitos, turiferário, Diáconos, Sub-Diáconos, o Reverendíssimo Dom Abade com o pálio, o Santíssimo Sacramento e as Monjas. Poderíamos realmente fazer aquele evento. Mas as pessoas não me amam mesmo… Mas, o Padre Timothy desenterrou um excelente artigo da Revista The Eastern Churches´ Quaterly sobre os ritos para admissão do eremita no Ritual Copta. Contém duas belíssimas orações. Não passaremos por elas, mas depois que as orações são proferidas, eles celebram a Liturgia. Isso acontece aos pés do penhasco onde encontra-se a sua caverna. Ao final da Liturgia, o eremita faz uma prostração profunda e o bispo recita sobre ele a oração dos mortos. Isso é padrão em todas as Liturgias para eremitas. Muitas vezes, quando alguém está para ser enclausurado, é rezada a Missa Pro Defunctis. Depois disso tudo, com a ajuda de uma corda, o eremita começa a escalar rumo a sua caverna. Durante esse processo, os padres e monges estão cantando os Salmos 148, 149 e 150. Então o bispo dá a sua bênção, o eremita empurra a sua corda, o bispo diz: “Que a Paz esteja convosco” e todos voltam para casa. E assim, podemos ver as possibilidades de um evento como esse.

Bem. Passei exatamente a metade de minha vida monástica no noviciado: dois anos como noviço e dez anos como Mestre de noviços, isto é, doze dos vinte e quatro anos. E o restante do tempo, praticamente, estava com os estudantes, pois fui estudante ou mestre dos estudantes. Assim, toda a minha vida passei no noviciado ou no juniorado – e nunca me formei! Mas tem sido um tempo excelente. Posso ver a graça de Deus durante todo esse tempo. É o melhor trabalho no mosteiro, Mestre de noviços, de todos os pontos de vista. Não deixe ninguém enganá-lo dizendo que é terrivelmente difícil. É um trabalho muito consolador e um bom trabalho; o vice-mestre, o Espírito Santo ou qualquer outra pessoa chegará e fará todo o trabalho para você. Incidentalmente, também, você aprende, aprende muito. É uma vida excelente estar aprendendo continuamente, pois aprendemos quando ensinamos; e amo tudo isso ainda mais do posso dizer. Faço muito barulho dando as conferências – às vezes fica um pouco difícil, e fico terrivelmente cansando ao som da minha própria voz – mas ainda assim, é uma graça ter que esforçar-se para partilhar alguma coisa. O que tentamos passar o tempo todo é aquilo que dizemos para nós mesmos: “Esses jovens estão olhando para mim e pensando: ´Será que esse cara coloca em prática o que está pregando? ´ – ´Qual o sentido dessa pessoa sentada em nossa frente e nos dizendo todas essas coisas?´” Isso causa muita preocupação. Temos que ficar em estado de alerta, tentar e certificar-se de nunca dizer nada de que possa arrepender-se. O que pede disciplina. É uma boa formação. E assim, sou muito grato por tudo isso.

Agora, não tenho a intenção de fazer um longo panegírico da vida solitária, mas o que é, precisamente, que está acontecendo? O que estou fazendo? Qual o sentido disso tudo?

Primeiro, não se trata de algo que propõe a todos no mosteiro que decidam que têm de ser um eremita, e que de repente, eremitas sejam algo a ser almejado – embora seja algo bom ser um eremita, eu não deveria querer sê-lo se eu achasse que não fosse uma coisa boa. Mas como alguém poderia considerar isso? Um sentimento genuíno de simpatia parece estar acontecendo por aí, e a impressão geral que tenho tido, francamente falando, é que as pessoas estão dizendo: “Bem, o bom e velho Luís, de alguma maneira ele conseguiu!” Há um tipo de clima de esperança de que se você torce o braço do Abade o bastante, você consegue o quer. Agora, deixem-me dizer, cá entre nós ou não, que não consegui isso torcendo o braço do Reverendíssimo Dom Abade, porque não se pode torcer o braço daquele homem. Ele fica furioso se alguém torce o seu braço. Não vou dizer que não tenho tentado fazê-lo, mas já vi que não funciona assim. E o que tenho para dizer no final das contas, sobre a aparecimento da casa em questão, a permissão de ir ficar e lá dormir, e finalmente a permissão de ir e lá viver – isso tudo aconteceu de uma maneira completamente inesperada, quando nem mais estava pensando no assunto. Tudo isso tem sido inesperado, embora convenhamos que quando tratamos do assunto longo o bastante podemos ver os sinais de que pode vir a acontecer. A primeira vez que cheguei aqui – é uma coisa impressionante, tenho pensado nisso muito frequentemente neste último ano – eu estava em retiro, era a Semana Santa de 1941, e saí para uma caminhada. Estava meio cansado de ficar no mosteiro – uma atmosfera artificial, insatisfeito com o lugar – estava pensando se iria entrar para este lugar, se de fato era o lugar certo, e a resposta era sempre “não.” Fui caminhar na estrada de trás e parei em frente ao curral de ovelhas. Estava de pé, exatamente no lugar da encruzilhada em que se subia para o eremitério, dizendo: “Não poso suportar essa prisão, é impossível.” Olhava para a construção e dizia: “Este lugar está absolutamente fora de questão. Como eu poderia viver num lugar desses? – Não dá para sair para a floresta!” Como se eu estivesse dizendo ao Senhor: “Parece que o lugar em que quer para mim fica na floresta, e não pode ser este.” Então, todas as vezes que passo por esse lugar: “O que isso significa? Não é este o lugar? Quem está sendo inteligente aqui, você ou eu?” Esta é uma das melhores coisas que acontecem em nossa vida, que nos fazem pensar um pouco.

Claro, esta vida não é somente para mim, isto é para a comunidade, para outras pessoas. Numa situação dessas pensamos que estamos fazendo tudo pelas outras pessoas. A comunidade precisa de eremita. Graças a Deus me escolheram. Estou feliz por isso. Precisamos de um eremita. Por quê?

Nesta fase da vida monástica, as pessoas precisam de evidência real de que é possível ir mais além do que simplesmente proteger o trabalho de rotina: todos viajando na velocidade da mais lenta embarcação. É muito necessário hoje sentir que há algum espaço de liberdade para a vocação individual na vida monástica. Pois a vida monástica não é algo de produção em série. Se é algo em série, então há aí alguma coisa morta. Existe sim, algo de produção em série num certo sentido para manter a ordem, mas isso não funciona por muito tempo; e todos aqui sabem que estamos aqui para algo sutilmente diferente do que só a vida monástica em geral. Pode não ser mesmo uma questão de vida solitária. Penso que vocês são bons homens de comunidade na sua maioria e certamente homens de comunidade muito melhores do eu poderia ser ou jamais poderia ser. Encontrarão muitas graças nesta vida comunitária. Mas essencialmente elas vêm para a mesma situação e ainda assim todas são diferentes, pois somos pessoas diferentes. Cada um de nós tem uma vocação insubstituível de ser Cristo; e o Cristo que está suposto que eu seja será minha versão de Cristo, e se eu não corresponder a isso, estará faltando algo para sempre no Reino do Céu. Cada um de nós sabe disso e sente isso. E cada um de nós gostaria de ter uma garantia de que na vida monástica haja a possibilidade de amadurecimento, num sentido individual que realmente vem de Deus. E algumas vezes coisas como essas realmente vêm de Deus.

O que significa a vida solitária? É a mesma coisa que toda a vida monástica. Há uma coisa básica, essencial na vida monástica e na vida Cristã, a coisa que todos nós buscamos, de uma maneira ou de outra, um tipo de garantia de que seja possível, neste tipo de vida, colocar de lado todas as preocupações, viver sem as preocupações, não ter as preocupações. Agora, o que queremos dizer com “não ter com que preocupar-se?” Não queremos dizer: “Bem, não me preocupo. Não me preocupo com o que fazem. Não me preocupo se vão rezar Missa em Chinês, isso não me afeta.” Não, não é isso. Mas a vida do mundo, no sentido negativo da palavra, é uma vida de preocupações. É uma vida de preocupações inúteis. E é uma vida de preocupação autodestrutiva, pois trata-se de uma vida que não pode confrontar o inevitável fato da morte. É uma vida cheia de morte, que tem a morte nas suas entranhas e não se pode fugir desse fato. E continua num círculo que vai, volta e não escapa do fato de a morte é o fim – e então vem a morte e a morte é o fim, e ponto final. Uma vida que não é nada além de uma reta que aponta para o túmulo é uma vida de preocupações, uma vida sempre crescente de preocupações, uma vida de frustração, uma vida de futilidade. E isto é o que significa “mundo” no mau sentido do termo.

Falando de maneira idealista, a vida eremítica é suposta ser a vida na qual todas as preocupações são colocas de lado. Antes de tudo, porque é uma morte. Aceita completamente a morte como um fato estrutural da vida. É uma morte para a sociedade, uma morte para certas consolações da sociedade, uma morte para alguns tipos de apoio, uma renúncia até mesmo de cuidados. Uma pessoa não opta pela solidão simplesmente para praticar muitas virtudes. Se isto for um pressuposto, provavelmente não vou passar no teste. Mas opta-se pela solidão a fim de lançar todo seu cuidado para com o Senhor.

Deixem-me ler duas passagens de Caussade que traz toda a essência disso. São absolutamente aplicáveis à vida cenobítica tanto quanto à vida solitária. Operam no mesmo princípio. Primeiro de tudo: “O auto abandono [que é aquilo para o qual estamos aqui – esta ação de entrega total a Deus] é aquele contínuo esquecimento si que deixa a alma completamente livre para amar a Deus eternamente, sem a perturbação daqueles medos, reflexões, arrependimentos e ansiedades que a preocupação da própria perfeição e salvação traz.” O que o autor quer dizer – claro que eu deveria reler o texto quatro ou cinco vezes, pois cada palavra é importante, mas não dispomos de tempo – acusando os monges, do que na realidade nós fazemos. Viemos do mundo, deixando para trás preocupações mundanas, e chegamos ao mundinho do mosteiro que está cheio de suas pequenas preocupações. O problema com a vida monástica, ainda que seja solitária – numa vida solitária pode-se ser devorado por preocupações também – é que é suposto uma vida sem preocupações e nós a enchemos de preocupações. Somos devorados por preocupações – preocupações do nosso trabalho, da nossa vida de oração, sobre como estamos levando as coisas, preocupações sobre o que as outras pessoas estão fazendo, preocupações sobre isto e sobre aquilo – somos devorados por isso. E então os pensamentos, “medos, reflexões, arrependimentos e ansiedades,” essas constantes atividades… Podemos negar que a nossa vida seja uma vida de preocupações? Podemos negar que estamos constantemente voltando, refletindo e refletindo: “ele disse isso, fez esse sinal e eu fiz esse sinal, e da próxima vez vou fazer esse sinal e ele vai cair morto, porque dessa vez será aquele sinal – que ele vai ter que engolir.” Isto é preocupação, podemos ver; estas são coisas com as quais nos preocupamos, e estamos aqui para nos livrarmos delas. E claro, livramo-nos delas passando por elas.

Aqui é esta bela passagem, e é sobre o que penso que devo fazer, viver no alto daquele morro; e isto é o que estou pedindo para que rezem, que eu consiga, porque penso também que seja o que vocês devem fazer aqui embaixo e o que todos devemos fazer, de um jeito ou de outro: “Uma vez que Deus oferece tomar para Si mesmo as preocupações dos nossos afazeres, abandonemos de uma vez por todas, tudo, a Sua infinita Sabedoria, para que nunca mais estejamos ocupados com qualquer coisa além dEle e dos Seus interesses.” Ponto final. “Uma vez que Deus oferece tomar par Si mesmo nossas preocupações…” – isto é a vida monástica e isto é, acima de tudo, a vida solitária. Isto é o que significa a vida solitária. É uma vida na qual não nos preocupamos com qualquer coisa que seja, pois Deus está tomando conta de tudo. Este é o porquê não de termos muitos contatos com o mundo, não estamos terrivelmente ocupados com muitas pessoas, muitos trabalhos e muitos projetos: está simplesmente deixando Deus tomar conta de todas essas coisas. Tudo o mais que precisa de cuidado, Ele vai dar conta (com a ajuda do Celeireiro interior, do Enfermeiro e assim por diante – vão colocar as bandagens se necessário, mas nós colocamos nossos cuidados somente no Senhor).

Isto é o que é o Amor. Vamos encarar de uma vez por todas o fato de que estamos aqui para o amor. E o que é o amor? Quando amo outra pessoa, simplesmente esqueço de mim mesmo e amo a outra pessoa. Não fico preocupado comigo memo. E se amo a outra pessoa sabendo que é mútuo, então sei que a outra pessoa está pensando em mim. Então é isso que acontece no amor, cada um esquece de si mesmo para viver para o outro. Isto é o que Deus pede de nós. Ele pede que vivamos de tal modo que não tenhamos de pensar em nós mesmos, Ele pensará em nós. O que penso que devemos aprender a medida que percorremos a vida espiritual é fazermos exatamente isso até mesmo em matéria de virtude. Caussade, cuja doutrina estamos seguindo aqui, diz que devemos chegar ao ponto onde não pensamos mais sobre a virtude, não pensamos mais se estamos fazendo o bem, só fazemos o que fazemos. (Isto pressupõe que temos praticado alguma virtude e que estejamos vivendo uma vida razoavelmente decente, não tendo a polícia no calcanhar o tempo todo – mais ou menos fora de suspeita). Pois qualquer coisa que façamos, Deus tomará conta. Fazemos algumas coisas, as coisas mais obvias próprias de nossa situação, e então Deus vem e dá a graça. Então não estamos mais nos preocupando se somos virtuosos ou não, somente vivemos. Vivemos sem preocupações e cuidados por qualquer coisa sobre nós mesmos.

Isso não é exatamente fácil na vida solitária, pois uma das coisas que estamos sujeitos a fazer neste tipo de vida é precisamente o cuidado para consigo mesmo. Estamos passíveis de preocupação para com muitas coisas. Uma pessoa que vem para a vida solitária e preocupa-se consigo mesmo o dia inteiro, não tem a vocação para tal. Se optamos pela vida solitária, temos que simplesmente esquecer de nós mesmos e aproveitá-la. Então trata-se disso: esquecer de si mesmo, não preocupar-se consigo mesmo e ter a Deus como total conteúdo de sua vida.

Agora, o que isto faz – e eu sei, a partir da experiência que tenho até agora, isto faz – é que, de fato, às vezes é possível constatar que as coisas tornam-se transparentes. Não são mais opacas e não mais escondem Deus. Isto é verdade. O que devemos encarar é que a vida é simples assim. Estamos vivendo num mundo que é absolutamente transparente e Deus brilha através dele todo o tempo. Não se trata simplesmente de uma fábula ou uma bela estória; é verdade. E isto é algo que não somos capazes de enxergar. Mas se abandonamos a nós mesmos a Ele e esquecemos de nós, algumas vezes poderemos ver e talvez até com mais frequência: que Deus manifesta-se a Si mesmo em todos os lugares, em tudo – nas pessoas e nas coisas, na natureza e nos eventos, e assim por diante. E assim, torna-se muito obvio que Ele está em todos os lugares, que Ele está em tudo, e que não podemos existir sem Ele. Você não pode existir sem Deus. É impossível. É simplesmente impossível. A única coisa é não conseguimos ver assim. De novo, é para isto que estamos aqui.

O que torna o mundo opaco? São as preocupações. Tudo torna-se opaco à medida em que consideramos o mundo como um objeto individual e começamos a preocuparmo-nos com ele. Há esta coisa individual, há este dia pelo qual devo passar. É um dia particular e por isso tudo fica opaco. Chega mim num grande pacote opaco e perco meu tempo desembrulhando-o. E então, quando separo toda a embalagem, já é noite, tempo de exame de consciência e examino a mim mesmo: tirei toda a embalagem do pacote e não havia nada dentro dele. O outro dia chega e eis que estamos para fazer novamente. Até que um grande evento acontece – não sei – ganho o emprego de ensinar alguma coisa aos coelhos. Torna-se uma coisa importante e retiro o papel disso, peça por peça, então não encontro nada também. Então devo deixar aos coelhos o que eles são, coelhos; e se vemos que são somente coelhos, de repente enxergamos que são transparentes, e que a “coelhidade” de Deus brilha através deles, em todos esses benditos coelhos. Que as pessoas são transparentes, e que a humanidade de Deus é transparente nas pessoas. E que não devemos tomar cada pessoa como um pacote opaco: “Qual é o mistério desta pessoa louca aqui que eu tenho que analisar?” Vejo do outro lado do coro: “Por quê essa pessoa tem esse tique?” Não temos que saber o porque do tique dessa pessoa. Tudo que devemos ver é que ele é uma manifestação da humanidade de Deus. Há um modo de expressão em Deus, que é manifestada por cada ser humano: não somente pelo fato de que ele é uma criatura de Deus, mas pelo fato de que ele foi redimido por Cristo. De novo, esta é a nossa vida, e é assim que funciona. Mas isto não se torna aparente enquanto tentamos amar o mundo por si mesmo.

Aqui fica o meu legado para o noviciado – um dos melhores livros2 que tenho lido por um longo tempo. Escrito por um Padre Ortodoxo chamado Alexander Schmemann, que foi professor no St. Vladimir´s Seminary (ele é Lituano). É muito simples e muito bom, e sugiro que cada noviço deveria lê-lo duas vezes – ou ao menos uma vez. Ele fala sobre a Igreja no mundo. A tentação agora, como podemos ver, seria dizer: “As pessoas no mundo realmente têm a resposta certa. Estão chegando a algum lugar. Nós, com a nossa religião, estamos brincando, brincando, brincando e perdemos o rumo. E o fato de que perdemos o rumo com essas pessoas mostra que eles são mais inteligentes do que nós, que eles realmente têm a resposta.” Assim, alguns teólogos – teólogos Anglicanos, entretanto – estão até mesmo dizendo: “Deveríamos viver no mundo como se não existisse Deus, pois religião é um escândalo para o mundo; e se assim o fizermos, poderemos aprender com o mundo; Deus está, talvez, falando ocultamente através do mundo.”

Schmemann diz que essas pessoas estão loucas. Estão esquecendo todo o significado da Cruz. Estão colocando sua esperança neste contínuo desenvolvimento do mundo, que está supostamente progredindo e progredindo na direção do ponto Ômega, o que é bom (ele não está falando de Teillhard de Chardin, mas trata-se do mesmo tipo de aproximação progressiva), e acreditam que porque podemos construir uma sociedade mais humana, isto de alguma maneira pode trazer Deus manifestado no mundo e na sociedade, e este seria o caminho. E Schmemann diz: Veja, quando Cristo foi morto na cruz, a verdadeira vida do mundo foi rejeitada e então foi o começo do fim. O Cristianismo que se comporta como se a resposta realmente estivesse no mundo, esqueceu o real significado da cruz. A resposta está no mundo, mas é Deus, não o mundo. É esta transparência de Deus no mundo que é a resposta, mas isto pela virtude da cruz, a ação transformadora da cruz.

Deixem-me ler este parágrafo:

O Cristianismo parece, entretanto, pregar que se os homens tentam viver seriamente vidas Cristãs, a crucificação pode, de alguma maneira, ser revertida.”

Isto é, de fato, a maneira como muito disso é colocado: que se vivemos uma boa vida Cristã, com muito amor pelas pessoas, isto tornará todo realidade – realmente haverá progresso rumo a uma maior e maior manifestação de Deus no mundo como mundo. E ele diz que não será assim:

Isto acontece por o Cristianismo esqueceu-se de si mesmo, esquecido de que primeiro, sempre, antes de tudo, deve colocar-se diante da cruz. Não que esse mudo não possa melhorar. Um de nossos objetivos é certamente trabalhar pela paz, justiça e liberdade. Mas enquanto pode ser melhorado, nunca poderá torna-se o lugar que Deus tinha a intenção de que fosse, um paraíso.”

O paraíso acabou, veja. Não se trata de paraíso, mas é a cruz, e a restauração de todas as coisas em Cristo, que é a meta muito maior.

O Cristianismo não condena o mundo, o mundo condenou-se a si mesmo, quando no calvário condenou o Único que viveu seu verdadeiro eu. ´Ele estava no mundo e o mundo foi feito por Ele e o mundo não o reconheceu.´ Se pensamos seriamente sobre o real significado, o verdadeiro escopo destas palavras, sabemos, como Cristãos, enquanto formos Cristãos, que somos, antes de tudo, testemunhas deste fim, o fim de toda alegria natural, o fim de toda satisfação do homem com o mundo e consigo mesmo, o fim, de fato, da vida como uma razoável e razoavelmente organizada busca de felicidade.”

Não há felicidade neste mundo. Ponto final. E temos que estar bem claros sobre isto. É aqui que falhamos.

Os Cristãos não tiveram que esperar pelos modernos proponentes de ansiedade, desespero e absurdidade existencialista para ficar conscientes de tudo isso. Entretanto, ao longo de sua extensa história, os Cristãos muitas vezes esqueceram o significado da cruz e desfrutaram da vida como se nada tivesse acontecido,

como se nunca tivesse acontecido a crucificação –

embora cada um de nós, muitas vezes, tire uma folga, sabemos que no mundo em que Cristo morreu, a vida natural chegou ao seu fim.”

Esta é a metade da estória. A outra metade é a maré de grande alegria que eclodiu neste mundo morto. O mundo está morto, condenado à morte porque simplesmente centrou-se sobre si mesmo na morte; mas nesta situação vem a palavra da vida, que é a palavra da vitória, a palavra da vitória de Cristo sobre a morte. Este é o anúncio da grande alegria que ouvimos no Evangelho e que supera o mundo. E isso é um dado central para todos nós, cenobitas, eremitas ou qualquer outra coisa. Somos testemunhas dessa alegria e não devemos viver uma vida que implique qualquer dúvida sobre essa alegria. Mas não conseguimos ficar sem duvidar. Não passamos sem a tentação e o escrutínio da dúvida. E temos então todo o barulho de todas as pessoas neste coro unânime dizendo: “O mundo tem a resposta, estamos indo na direção correta.” (Mais à frente no seu livro Schmemann tem algumas coisas tremendamente importantes para dizer sobre falsa religiosidade – a ideia de que se você é um religioso muito profissional, Religioso com R maiúsculo, você enfatiza esta divisão entre o sagrado e o secular e torna impossível ver a Deus no mundo, e exageradamente enfatiza a morte. Você terá de ler o livro para pegar a ideia.)

Schmemann fala sobre os discípulos de Emaús e diz: a questão da religião não é que ela vem ao mundo para dar a resposta e dizer que há outra vida melhor. Esta não é a estória. Não é uma questão de dizer: “O.K., o mundo não é bom, mas o mundo que vem depois será melhor” e ainda “O mundo é uma bagunça, mas em breve iremos morrer, graças a Deus, e então iremos para um outro mundo e será melhor.” Não trata-se disso. O anúncio é a grande alegria de que o Senhor está presente e vivendo no mundo. É que o Senhor está conosco. Dominus vobiscum, o Senhor está convosco. Isto é o que estamos continuamente anunciando na Liturgia, que o Senhor está presente no mundo. É o Seu mundo e pertence a Ele e Ele manifestou seu triunfo e vai torna-lo absolutamente claro. E não estamos somente pendendo na direção de uma vida de imortalidade abstrata, porque somos seres espirituais com uma alma; tendemos para a plena manifestação do Reino de Deus. Assim, os discípulos de Emaús – a sua vocação é nossa vocação – voltaram correndo a Jerusalém exultando de alegria e felicidade, não porque compreenderam os mistérios de um outro mundo, mas porque tinha visto o Senhor. É para isto que estamos aqui. Estamos todos aqui para ver o Senhor, e ver com os olhos da fé. Mas ver que o Senhor realmente vive e que o Senhor é realmente o Senhor.

Assim, eu peço a todos que rezem; e quando rezarem por mim, tudo o que peço que rezem é que, acima de tudo, eu esqueça completamente minha vontade própria e completamente me entregue à Vontade de Deus, pois esse arremesso é para isso e isso é o que mais quero. Não quero subir para lá e somente sentar e aprender uma nova forma de oração, ou algo parecido; é uma questão de entrega total a Deus. E eu rezarei para que vocês façam a mesma coisa. E assim todos nós… A ambição daqueles monges Gregos no Monte Athos é que possam chegar ao ponto de se deixar beijar por Deus. Há uma foto de um colega, um eremita do Monte Athos, no meio de um livro velho, um cara surrado, enrugado e esfarrapado com um corvo em seus ombros, e a legenda traz: “Ele foi beijado por Deus.”

1 Um buquê espiritual.

2 Alexander Schmemann, Sacraments and Orthodoxy (N.Y., Herder & Herder, 1965). Confira o cometário-artigo de Thomas Merton sobre este livro juntamente com o artigo de Schmemann Ultimate Questions: an Anthology of Modern Russian Thought (N.Y., Holt, Rinehart & Winston, 1965), in Monastic Studies 4 (1966), pp. 105-15.

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