Blog › 12/05/2020

Um provérbio chamado Margie

Trecho da biografia de Thomas Merton VIVER COM SABEDORIA, escrito por Jim Forest
Editora Madeirense (Funchal, 2018) páginas 171-177 | Tradução de Frei Nélio Mendonça, ofm

Merton iniciou o ano de 1966 com dores persistentes nas costas. A 23 de março entrou no St. Joseph’s Hospital de Louisville, para uma intervenção na coluna. Uma semana depois, quando estava a recuperar da cirurgia, conheceu uma estudante de enfermagem de olhos cinzentos e longos cabelos negros que se parecia tremendamente à Provérbio original dos seus sonhos.
Chamava-se Margie[1]. Falaram do seu livro The Sign of Jonas, dos desenhos humorísticos de Peanuts e da revista Mad. Merton logo se tornou dependente das suas visitas e da sua conversa
animada. Poucos dias depois, quando Margie deixou Louisville para passar um fim de semana em Chicago, Merton sentiu-se tolhido pela solidão. Jazia desperto pela noite dentro na sua cama de hospital, atormentado “pela ideia crescente de que estávamos enamorados, e eu não sabia como poderia viver sem ela.”[2] Antes de voltar para o mosteiro deixou-lhe uma carta, confessando a sua necessidade de amizade e dizendo como deveria dirigir-se-lhe, escrevendo sobre o envelope “assunto de consciência”, a fim do mesmo não ser lido por mais ninguém no mosteiro.

Começou então um dos períodos mais alegres e angustiosos da vida de Merton.

Tendo regressado ao mosteiro, a 10 de abril, mudou-se temporariamente para a enfermaria. Sentiu-se aturdido. Uma semana depois recebeu uma carta de quatro páginas de Margie. Merton
respondeu-lhe, dizendo que se tinha enamorado dela.

Poucos dias depois, esquecendo as normas do mosteiro, telefonou-lhe, assinalando uma data para se encontrarem, a 26 de abril, quando ele estivesse em Louisville para a consulta médica. Almoçaram juntos num restaurante da cidade, onde Merton lhe entregou um poema que tinha composto para ela, The World in My Bloodstream (seguiram-se mais dezessete poemas para Margie). Margie disse a Merton que não sabia aonde se estava a meter, enquanto Merton assegurava que podiam amar-se um ao outro sem necessidade de relações sexuais. Podiam aspirar a um amor espiritual. O resto, garantia-lhe Merton, podia-se controlar.

A 5 de maio, James Laughlin e o poeta chileno Nicanor Parra foram visitar Merton. Participaram numa reunião-merenda não longe da abadia. Utilizando umas moedas de Laughlin, Merton chamou Margie por telefone, a partir de uma cabine telefónica na estrada, e combinaram encontrar-se e tomar algo juntos ao final do dia. Finalmente jantaram os quatro no Luau Room do aeroporto de Louisville. Merton, com a barba por fazer e vestindo uma camisola e um sobretudo, devia parecer a pessoa mais extravagante que alguma vez tinha aparecido por ali em muito tempo (“parecia um preso condenado”, anotava no seu diário, “e provavelmente sentia-me como tal”). Com a atenção de Merton principalmente concentrada nela, a situação deve ter sido um pouco violenta para Margie. Por fim, Merton e Margie saíram para dar um passeio, sentaram-se um pouco num jardim com relva nos limites do aeroporto, à vista dos outros, mas a certa distância. “Suponha que a luz clara deste entardecer fosse o amor”, escreveu Merton acerca do que viveu nesse dia, “e suponha que nós somos essa luz, esse amor: como se a claridade radiante do pôr do sol, a sua beleza, o seu significado, se encarnasse em nós.. e o sentido de cada coisa que sempre sucedeu se centrasse repentinamente em nós, porque nós éramos agora amor. Seria o nosso turno de expressar daí em diante em mútuo respeito a essência de toda a verdade e a vida e o significado do nosso amor.”

“Thomas Merton tinha encontrado a sua autêntica plenitude no amor verdadeiro”, comenta Michael Mott[3]. Margie foi para Merton a única pessoa com quem pôde ser ele mesmo, sem máscaras. Pela primeira vez, Merton sentiu que era completamente conhecido não só por Deus, mas por outra pessoa. “Isto é o que o próprio amor de Deus faz em nós”, escreveu essa noite num poema[4]. No seu diário, perguntava-se pela possibilidade de um “casto matrimônio.”

Juntos de novo, no dia 7 de maio, para um picnic com outros amigos nos limites do lago, nas terras do mosteiro, decidiram dar um passeio juntos. Merton explicou-lhe que era uma pessoa que necessitava viver só, mas, ao mesmo tempo, não podia viver separado dela. Sentaram-se na margem de um riacho e imaginaram Merton à procura de um trabalho em Louisville, comprando um carro, e estando os dois juntos sempre que quisessem. Nessa noite, Merton escreveu questionando-se conscientemente se acaso ele não “poderia também amar com uma tremenda plenitude.” A sua definição do voto de castidade ia-se encolhendo consideravelmente. Apesar de tudo, estava consciente de que, enquanto ia sendo arrastado cada vez para mais longe daquilo que se esperava dele como monge, também se sentia intensamente livre, e não menos quando rezava. Num poema, perguntava-se: “Porque Deus te criou para estar no centro do meu ser?”[5].

A 14 de maio esteve em Louisville, por razões médicas, e tomou uma refeição com Margie. Para além de partilhar o seu entusiasmo pela balada de Joan Baez, Silver Dagger, falaram sobre
o que poderia significar viverem juntos. (Silver Dagger foi a sua canção de amor. Merton tinha um gira-discos no eremitério. Ambos escutavam a canção à 1.30 da manhã, quando terminava o turno de Margie no hospital. Merton adiantou uma hora o tempo de levantar-se.) Cinco dias depois encontraram-se para passear e merendar nos bosques próximos de Vineyard Knob, nas terras de Gethsemani, mas afastados dos trilhos usados pela comunidade; e partilharam uma garrafa de vinho, que Margie tinha trazido para a ocasião.

Alegria e culpabilidade seguiram-se uma à outra em rápida sucessão, assim como as fantasias de casamento se alternavam com decisões de colocar fim à sua relação, para que ele pudesse viver a sua vocação, como se supunha que devia vivê-la.

Assustado por vislumbrar até onde poderia levar o ímpeto do amor, Merton cancelou os planos para outro encontro uns dias mais tarde. Tinha regressado agora ao seu eremitério, desde a enfermaria, e encontrava-se frente a frente com a difícil decisão que devia tomar.

O próximo encontro teve lugar nas proximidades do restaurante Cunningham, em Louisville, associado a outra visita ao médico. Ambos sentiram que o clima dos seus encontros tinha mudado. “Nunca poderei ser outra coisa mais do que um solitário”, escreveu nessa noite no seu diário. “A minha solidão é o meu clima habitual. Foi simplesmente extraordinário ter vivido tantos momentos de completa identificação, de harmonia e amor com outra pessoa, com ela. Gosto das pessoas, mas normalmente canso-me de estar com os outros depois de uma hora. Poder estar com ela horas e horas sem cansar-me dela um instante, foi um milagre; mas isso não significa que eu não seja
essencialmente um solitário.”

Uma semana mais tarde viram-se de novo em Louisville, desta vez no consultório de um amigo de Merton, o psiquiatra Jim Wygal, apesar do desacordo deste com o que Merton estava a fazer. Por seu lado, Merton estava novamente convencido de como amava profundamente Margie, e o vazio que se lhe afigurava o futuro, quando se imaginava sem ela.

Consciente de que o seu voto de castidade se ia esfumando, recorreu ao seu confessor, revelando pela primeira vez a um irmão monge o que se desenrolava na sua vida. Apesar disto, continuava presente a ideia do casamento, contra todos os seus argumentos e resoluções.

Uma parte de uma chamada telefônica, no dia seguinte, de junho, foi ouvida por um monge que trabalhava na central telefônica; este sentiu que era sua obrigação informar Dom James, segundo soube Merton pelo despenseiro no dia seguinte. Merton sabia, melhor do que ninguém, que algo parecido tinha de acontecer no mosteiro. Houve tanto de ansiedade como de alívio na sua resposta à notícia.

Merton não esperou que o abade o chamasse. Foi ver Dom James e contou-lhe em linhas gerais o que estava a acontecer, negando-se, contudo, a revelar o nome de Margie. Merton ficou aliviado pela reação de Dom James. Este não se exaltou, falou com estima e preocupação, pedindo-lhe unicamente que fizesse, com urgência, um completo descanso. Por parte de Merton não foi uma conversa totalmente cândida, pois ele negou que estivesse a pensar no matrimônio – ainda que Merton e Margie tivessem falado sobre isso ao telefone. Dom James perguntou-lhe se o ajudaria o regresso à vida comunitária, talvez vivendo na enfermaria; mas deu a sua bênção a Merton para que continuasse no eremitério.

Merton ligou a Margie para contar-lhe o que tinha acontecido – algo que um e outro esperavam que acontecesse mais cedo ou mais tarde. Ela estava horrorizada pela desumanidade de tudo isto. Merton escreveu um poema amargo sobre o cuidado a ter com o amor, porque enche o mundo de destruição e dor[6].

No dia seguinte, Dom James disse a Merton que seria melhor que não tivesse mais nenhum contacto com “essa mulher”; e que não se tratava de um conselho, era uma ordem.

A 22 de junho, Merton decidiu: “devo abandonar todo este assunto.”

Dois dias depois, num sonho, Merton viu o rosto da sua mãe num emaranhado de espinhos escuros, atrás de luminosas rosas com pétalas de seda, uma imagem que contrastava muito com o seu único e hierático retrato refletido n’A Montanha dos Sete Patamares. Margie tinha mudado o seu modo de ver as mulheres, inclusive a sua própria mãe. Então sonhou que enquanto no hospital tinha sido “contundente e duro” com uma estudante de enfermagem, o celibato “ideal” defendia o seu voto de castidade, mas não a classe de ser humano que Merton queria ser.

Apesar das ordens do abade, parecia-lhe que seria um dever de caridade encontrar-se com Margie cara a cara uma vez mais. Quando foi a Louisville, para fazer um raio X, a 25 de junho, Merton encontrou-a muito perturbada. Ela tinha decidido procurar um trabalho no hospital da sua terra natal, onde planeava solicitar o voluntariado em “trabalhos especiais”, quer dizer, que exigissem sacrifício. Merton entregou-lhe A Midsummer Diary, escrito durante os dez dias anteriores. Tinha este cáustico subtítulo: “Ou o relato de como uma vez me tornei intocável.”

Enquanto se perguntava se deveria voltar a vê-la de novo nesse dia, voltaram a encontrar-se no dia 16 de julho quando Merton se encontrava em Louisville para o tratamento de uma torcedura no tornozelo. Ela apanhou-o na consulta do doutor e foram ao Cherokee Park, com um saco de cerejas na mão. Este foi um dos encontros mais felizes, apesar da horrível certeza de que não havia esperança para um futuro juntos. “Nós balançamos e nadamos / na dor de um amor sem palavras”, escrevia Merton num poema sobre esse dia, “A meio caminho entre / O céu e o inferno / Sião e o grande rio / Balançamos juntos / Neste amoroso e desesperado abraço…”[7]

Dom James falou novamente com Merton a 28 de julho, não sobre matrimônio, mas sobre outras indicações a propósito da indisciplina de Merton: uma visita sem autorização às vizinhas
irmãs do Loreto e um mergulho que Merton dera com um dos seus visitantes num dos tanques do mosteiro. Perguntando se a tensão do eremitério seria excessiva, Dom James sugeriu-lhe de
novo, que voltasse à vida da comunidade. Talvez Merton pudesse ensinar Sagrada Escritura, como mestre dos estudantes. O efeito principal desta conversa foi a tomada de consciência de que a sua vida como eremita corria perigo.

Ao voltar a falar com Dom James, uma semana depois, este gracejou com Merton sobre a sua ligação com Margie, pensando tudo estaria terminado completamente. O abade disse que lhe que deveria escrever um livro intitulado: Como meter eremitas no céu. Merton ficou zangado. Ao deixar o escritório de Dom James, Merton disse: “Quando a criança nascer, você poderá ser o padrinho!” Dom James tomou-o como uma brincadeira, mas Merton pôde ver a preocupação no seu rosto.

Em vez de correr o risco de continuar a encontrar-se com Margie, Merton enviou-lhe uma carta “dizendo efetivamente adeus”. Ela estava prestes a graduar-se e logo deixaria Louisville. Imaginá-la a abrir e a ler a carta foi para ele muito doloroso; tratou em vão de chamá-la por telefone. Dedicou-lhe então um poema. Ele sentiu uivos de dor, “vendo como os seus caminhos se afastavam da terra do meu ser… Pensava que me estavam a partir ao meio.” Uma semana depois, quando tentou chamá-la pelo telefone, descobriu que não tinha recebido as cartas que ela lhe enviara, inclusive aquelas que tinha assinalado como “assunto de consciência.” A voz dela, escrevia no seu diário, estava carregada de emoção.

A 8 de setembro, na continuação de um retiro privado, Merton fez um compromisso perpétuo de seguir a sua vocação de eremita: “Eu, Irmão Maria Luís Merton, monge professo solene da Abadia de Nossa Senhora de Gethsemani, tendo cumprido um ano de prova na vida solitária, pelo presente escrito faço o meu compromisso de passar o resto da minha vida em solidão, tanto quanto a saúde mo permita.” Dom James assinou como testemunha.

Ainda assim, Merton e Margie viram-se, breve e finalmente, duas vezes mais nos finais de outubro. Margie estava em Louisville para uma consulta médica e Merton encontrava-se no St. Anthony’s Hospital para tratamento a uns problemas intestinais. Depois, houve apenas algum contato ocasional por telefone; a última chamada de Merton a Margie foi poucos meses antes da sua morte.

No final, Merton renovou o seu compromisso de continuar a ser um monge e perseverar como eremita, a decisão mais difícil da sua vida. O seu amor por Margie não tinha terminado. Na sua alma, e provavelmente na dela também, tinha havido uma espécie de casamento.

Apenas alguns amigos souberam, com muita preocupação, do que estava a acontecer nesse verão, apesar de não ser intenção de Merton que isto ficasse em segredo. A James Laughlin entregou cópias dos poemas, para conservá-las em lugar seguro e para sua eventual publicação. Os diários foram parar, em parte, aos arquivos do Merton Legacy Trust, que Merton tinha criado com o Padre John Loftus, no Bellarmine College, em Louiville. Embora a publicação de certo material literário deveria atrasar-se até vinte e cinco anos depois da sua morte, não quis que nada se suprimisse, incluindo o seu amor por Margie: “Isto também deve ser conhecido, porque é parte de mim mesmo. A minha necessidade de amor, a minha solidão, a minha divisão interna, a luta, na qual a solidão é por vezes um problema e uma ‘solução’. E, porventura, tão pouco uma solução perfeita.”

 

 

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NOTAS:

[1] Para preservar a sua intimidade, refiro-me a ela simplesmente como Margie.
[2] Para um relato detalhado deste período da vida de Merton, ver Mott, 435. A não ser que se indique outra coisa, as citações usadas 454 e 461-462, e John Howard Griffin, Follow the Ecstacy. Neste capítulo provêm destas duas fontes.
[3] Mott, 443.
[4] «Louisville Airport», Eighteen Poems.
[5] «Certain Proverbs Arise Out of Dreams», Eighteen Poems.

[6] «Never Call a Babysitter in a Thunderstorm», Eighteen Poems.

[7] «Cherokee Park», Eighteen Poems.

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