Um profeta da paz em tempos de violência e guerra
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Adriano Cézar de Oliveira
A contemporaneidade não é isenta de violência e guerras, as quais sempre existiram na história da humanidade. Elas sempre foram vistas como força utilitária para a expansão de territórios e domínios. Não obstante, por meio delas a humanidade viu a ascensão e a quedas de inúmeros impérios. A historiografia tem nessas manifestações de força e poder um grande campo de estudo e análise.
Para os cristãos, a partir da ética proposta no Novo Testamento, a prática da guerra é condenada e deve de novo ser condenada. Essa prática precisa ser substituída pela consciência esclarecida de que a guerra jamais pode ser recurso último para solução de conflitos. Essa noção é transparente não só nas palavras de Jesus, como no seu modo radical de ser e de agir contra a violência e a favor da paz. As propostas de Jesus a favor da dignidade da pessoa e do poder do amor apontam para a fonte genuína da paz. Jesus, voltando-se para a pecaminosidade do homem, pede a eliminação das causas radicais da guerra. O sermão da montanha apresenta os objetivos máximos de justiça e paz, que serão realizados plenamente na nova terra, onde habita a justiça.1
O século XX, no qual nasceu Thomas Merton – considerado por muitos como o católico mais influente do século XX – foi marcado por duas grandes guerras de devastação incomensurável. Merton nasceu em um mundo mergulhado na atmosfera bélica e sob circunstâncias bombásticas, e diz “a não muitas centenas de quilômetros da casa em que nasci, estavam recolhendo homens que apodreciam em pântanos de chuva por entre cavalos mortos e desventrados canhões”.2
Mesmo sendo “espectador culpado” em um mundo dilacerado, Merton ousou romper consigo mesmo e com os “valores” da sociedade do seu tempo para olhar, com aguçada lucidez, as contrariedades ao seu redor.”3 O olhar de Merton foi se transformando e seu coração se dilatando sobretudo após sua epifania narrada na obra Reflexões de um Expectador Culpado4, famosa e conhecida experiência no centro de Louisville, Estado do Kentucky, EUA. Essa experiência se torna ponto fundamente para a abertura de Merton às problemáticas de seu século. Em pleno centro comercial, Merton percebe:
como que num momento de iluminação, que os votos monásticos não o separaram do mundo, mas o aproximaram ainda mais dele; que ele próprio é parte da família humana, tão amada por Deus e tão ameaçada pela violência presente na sociedade, na cultura e na religião.5
Após a experiência de Louisville, Thomas Merton redescobre um mundo que faz a “canonização da violência”6 e se pergunta: será que a violência política e religiosa é um fato que devemos tomar como banal e corriqueiro? Será a fé um narcótico que nos ajuda a conviver com a violência sem opor resistência? Como pode ser que os seguidores do Príncipe da Paz, ao longo da história, tenham se mostrado tão sanguinários? Por que, em vez de usarem a estratégia evangélica da não violência na solução dos conflitos internacionais, preferem o recurso às armas letais?7
Os questionamentos de Merton ressoam fortemente em sua obra. Em seu tempo, denuncia que a violência e a guerra estão sendo a norma pela qual se pretende a resolução de problemas internacionais e condena os governantes das nações por essa atitude. O primeiro texto que ajudará em nossa reflexão é o poema Original Child Bomb8, um longo poema de prosa escrito por Merton em 1961. O texto é baseado em eventos que levaram ao bombardeio de Hiroshima em 6 de agosto de 1945. O texto recebe de Thomas Merton o subtítulo “pontos para a meditação e para ser escrito nas paredes de uma caverna”. Merton afirma que Original Child Bomb é um “anti-poema”, composto por 41 sessões e 2.480 palavras. Nele o trapista profético usou ironia e eufemismo para enfatizar o horror dos eventos que descreveu. Ironicamente, Merton, parece sugerir que o bombardeio de Hiroshima arrisca o retorno da humanidade à condição primitiva de moradores pré-históricos das cavernas. A linguagem afiada de Merton quer trazer à reflexão sobre um dos eventos mais dolorosos do século XX, o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki.
O episódio assistiu toda uma preparação antes de ser executado. O evento está sob o poder de Harry Truman o qual tornou-se presidente dos EUA em abril de 1945. Conforme afirmado por Getúlio Bertelli:
A primeira bomba levou seis anos para ser produzida, ao custo de dois bilhões de dólares. Um grupo de cientistas alertou que o uso da bomba numa guerra seria de difícil ou impossível controle. Sua explosão no deserto do Novo México foi comemorada com devoção e com uma citação bíblica para confirmar os que duvidavam de seu desempenho, como o desconfiado e descrente almirante Leahy: “Senhor, eu creio, mas aumenta a minha fé”. Merton escreveu, cheio de indignação ética, sobre a obscenidade da bomba e o sacrilégio que a circunda. (…) Um sentimento quase religioso envolveu a preparação, transporte e uso da bomba, levada em procissão reverente até o avião Enola Gay em 6 de agosto de 1945. (…) Assim, não só o primeiro teste atômico secreto foi chamado de “Trindade”, quanto a missão de lançamento sobre Hiroshima, a partir de Tinian, foi chamada de “Papado”. Merton sente indignação ética diante da profanação e do sacrilégio da linguagem religiosa ligada à bomba.9
A bomba atômica lançada sob Hiroshima e Nagasaki, cidades sem nenhuma importância militar nos finais da Segunda Guerra Mundial10, matou setenta mil pessoas de imediato e, posteriormente, milhares delas por causa de queimaduras, envenenamento radioativo e a situação se agravou cada vez mais pelos efeitos da radiação. Como não lembrar do poema Rosa de Hiroshima escrito por Vinícius de Morais em 1954?
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A antirosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa, sem nada.
Anos mais tarde, surge no cenário outras guerras, a Guerra do Vietnã (1955-1975), em 1961 a invasão da Baia dos Porcos em Cuba11. No fim de 1961, em meio à Guerra Fria entre os EUA e a URSS (1947-1991), a consciência de Merton desperta para o fato de que vivemos numa era nuclear. Era um tempo em que prevalecia o primado do poder e da violência e, mesmo sob silêncio obsequioso imposto pelo abade geral Dom Gabriel Sortais, Merton escreveu secretamente 111 cartas, que foram recolhidas por pelos amigos e publicadas sob o título “As Cartas da Guerra Fria”. Neste tempo acontecia em Roma o início do Concílio Vaticano II (1962-1965), no qual muitos Padres Conciliares receberam exemplares dessas cartas. Vemos ressonâncias dessas cartas na elaboração da Constituição Gaudium et Spes12, sobretudo nos parágrafos 77-82, que tratam especificamente da corrida armamentista, da política de dissuasão e da guerra nuclear como crimes contra Deus e a humanidade.13
Merton escreveu para o jornal fundado por Dorothy Day, O Trabalhador Católico, um artigo polêmico sobre a loucura da guerra, onde afirma que “todos enlouqueceram, construindo abrigos nucleares, e preparando-se para atirar nos vizinhos… Basta disparar um alarme falso e nós mesmos nos mataremos uns aos outros a tiros… Prova perfeita de democracia e individualismo”.14
Como remediar o problema devastador da violência no mundo atual? A resposta de Merton foi profética, feita de bênçãos e maldições. Ele não usou de meias palavras, por isso sua atitude incomodou muita gente. O que ele propõe como solução à canonização da violência é a resistência cristã não violenta15 por meio da “compaixão por todos os seres vivos, pela vida, pelos simples e indefesos, pela raça humana em sua cegueira.”16
Na obra Novas Sementes da Contemplação, Merton dedica um capítulo à questão da guerra intitulado O medo é a raiz da Guerra. No início desse escrito afirma: Na raiz de toda guerra está o medo; não tanto o medo que os homens têm uns dos outros, mas o medo que têm de tudo. Não é só que desconfiem uns dos outros: não confiam nem em si mesmos. Não sabem ao certo quando alguém pode matá-los, mas têm ainda menos certeza de quando eles mesmos podem se matar. Não podem confiar em nada porque deixaram de confiar em Deus.17
No mundo contemporâneo e, especialmente, no Brasil a denúncia de Merton e sua voz profética pela paz continua de grande atualidade, pois há no ar um clima de ódio e, não com pouca frequência, assistimos episódios de incitação à violência. A Assembleia Geral dos Bispos do Brasil (CNBB), realizada entre os dias 01 e 10 de maio, denunciou essa realidade:
A violência também atinge níveis insuportáveis. Aos nossos ouvidos de pastores chega o choro das mães que enterram seus filhos jovens assassinados, das famílias que perdem seus entes queridos e de todas as vítimas de um sistema que instrumentaliza e desumaniza as pessoas, dominadas pela indiferença. O feminicídio, o submundo das prisões e a criminalização daqueles que defendem os direitos humanos reclamam vigorosas ações em favor da vida e da dignidade humana. O verdadeiro discípulo de Jesus terá sempre no amor, no diálogo e na reconciliação a via eficaz para responder à violência e à falta de segurança, inspirado no mandamento “Não matarás” e não em projetos que flexibilizem a posse e o porte de armas.18
Thomas Merton, 51 anos depois de sua morte continua sendo uma voz profética que prega a paz em tempos de guerra e violência. Seus textos sobre contemplação, espiritualidade, monasticismo, poemas e desenhos não podem ser lidos em detrimento de seus textos de cunho social e político; há que se recuperar essa faceta de Merton em tempos tão sombrios de generalizada crise global para que cada cristão, especialmente os leitores de Merton, sejam uma semente de paz e esperança. A essência da vocação de Merton deve ser a essência de nosso testemunho cristão nesse século, ouçamos sua voz e seu apelo:
(…) É minha intenção fazer da minha vida inteira uma rejeição, um protesto contra os crimes e as injustiças da guerra e da tirania política, que ameaçam destruir todo o gênero humano e o mundo inteiro. Através da minha vida monástica e dos meus votos, digo NÃO a todos os campos de concentração, aos bombardeamentos aéreos, aos julgamentos políticos, que são uma pantomina, aos assassinatos judiciais, às injustiças raciais, às tiranias econômicas, e a todo o aparato socioeconômico, que não parece encaminhar-se senão para a destruição global, apesar do seu bonito palavreado a favor da paz.19
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Adriano Cézar de Oliveira
Licenciado em Filosofia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino (2012). Especialista em História da Arte Sacra pela Faculdade Dom Luciano Mendes (2018). Bacharelando e pós-graduando em Teologia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino (2015-2019). Pós-graduando em Ciências da Religião pela Faculdade Única de Ipatinga (2018-2019). E-mail: caesar.ecosdemistica@icloud.com.
1 BASTERRA, Francisco Javier Elizari. Moral da Vida e da Saúde. In: Práxis Cristã: opção pela vida e pelo amor. Vol. II. Ed. Paulinas, 1983, p. 126.
2 MERTON, Thomas. A montanha dos sete patamares. São Paulo:Petra, 2018, p. 13 apud OLIVEIRA, Adriano Cézar de; MENESES JÚNIOR, Cristóvão de Sousa. Meditando com Thomas Merton e Francisco de Assis. Homenagem aos 50 anos da Morte de Thomas Merton (1968-2018). Campinas: Editora D7, 2018, p. 17.
3 OLIVEIRA; MENESES JÚNIOR, 2018, p. 17.
4 MERTON, Thomas. Reflexões de um expectar culpado. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 181.
5 BERTELLI, Getúlio. Violência e paz na vida e obra de Thomas Merton. Atualidade Teológica. Revista de Teologia da PUC-Rio/ Brasil. v. 28, p. 46-68, 2008, p. 46-47.
6 BERTELLI, 2008, p. 47.
7 MERTON, Thomas. Paz na Era Pós-Cristã: Testamento de um dos Maiores Místicos do Século XX. Aparecida: Editora Santuário, 2007, p. 23- 81; 116ss.
8 MERTON, Thomas. The Collected Poems of Thomas Merton. New York: New Directions, 1977, p. 293-302.
9 BERTELLI, 2008, p. 48.
10 Durante a I e II Guerras Mundiais, em ambos os lados beligerantes havia cristãos lutando uns contra os outros, com o aval das hierarquias católica, ortodoxa e protestante. Cf. BERTELLI, 2008, p. 49.
11 Em 1961, quando da invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, pelas tropas norte-americanas, Merton escrevia à sua grande amiga Dorothy Day: “Sinto que num tempo como o nosso, em sã consciência, não posso continuar escrevendo coisas como meditação, embora tenha sua importância, nem sobre estudos monásticos secundários. Penso que devo enfrentar os grandes problemas atuais, que são questão de vida e de morte. E é isso que todos temem”!. Cf. MERTON, Thomas. The Hidden Ground of Love: The Letters of Thomas Merton on Religious Experience and Social Concerns. San Diego: Hartcourt Brace Jovanovich, 1993. Carta a Dorothy Day de 23/ago/1961, p. 139-140 apud BERTELLI, 2008, p. 47.
12 Cf. Gaudium et Spes, números 79-82. Disponível em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html. Acesso em 10 de maio de 2019.
13 Cf. BERTELLI, 2008, p. 52.
14 Cf. HART, Patrick e MONTALDO, Jonathan (orgs). Merton na Intimidade: Sua Vida em seus Diários. Rio de Janeiro: FISUS, 2001, p. 214.
15 Cf. BERTELLI, 2008, p. 53.
16 Cf. HART, 2001, p. 221.
17 MERTON, Thomas. Novas sementes de contemplação. Petrópolis: Vozes. 2017, p. 111. Merton dedica uma obra a reflexão da fé e da violência: MERTON, Thomas. Faith and Violence: Christian Teachings and Christian Practice. Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1968.
18 Disponível em: http://www.cnbb.org.br/episcopado-brasileiro-em-sua-57a-assembleia-geral-emite-mensagem-da-cnbb-ao-povo-brasileiro/. Acesso em 10 de maio de 2019.
19 MERTON, Thomas. La voz secreta. Refflexiones sobre mi obra en Oriente y Occidente. Santander: Sal Terrae, 2015. p. 96-97.