Thomas Merton no Sri Lanka
Foi com tristeza e dor que sobreveio a notícia dos graves atentados que mancharam de sangue a Páscoa no Sri Lanka. Nesta terra, colonizada inicialmente por portugueses, menos de dez por cento são católicos; um alvo pequeno, mas que foi atingido em cheio durante as celebrações da Ressurreição do Senhor.
A imagem mais antagônica de toda catástrofe é também aquela que traz maior perplexidade: uma estátua do Cristo Ressuscitado que parece ter voltado à cena da flagelação da Sexta-feira Santa. Jesus, a Cabeça, desta vez manchado pelo sangue de seus membros, povo fiel reunido em torno do altar durante a Missa numa Igreja de Negombo, cidade ao norte da capital Colombo. A explosão de bombas nestes tempos e neste chão levanta uma fumaça fúnebre em um cenário que também presenciou outra forma de “explosão”.
Merton, em sua viagem ao Oriente, visitando o Sri Lanka nos primeiros dias de dezembro de 1968, nos legou a descrição de uma experiência estética e luminosa de devastadora beleza, relatada em detalhes no seu Diário da Ásia. Este evento, além de entrar no rol das “epifanias” vivenciadas por este buscador de Deus, encerrou sua peregrinação: “sei e vi aquilo que obscuramente eu procurava.” (O Diário da Ásia, pág. 182)
Posto isso, e a fim de amenizar o terror provocado pelo número oficial de mortos, que só cresce nesta catástrofe no Sri Lanka, queremos enxugar as lágrimas para lançar um olhar de ternura sob o Senhor Ressuscitado e em sua ação sobre nós: o de fazer-nos participar de Sua Vida Divina.
Este envolvimento, certamente, permite ao homem desfrutar na terra das luzes da fé, que são muitos superiores às da razão, de modo a permitir possuir a Deus pela visão beatífica. A claridade desta visão permeou, com os privilégios sobrenaturais de Deus e por Sua insigne bondade, em, pelo menos, três episódios da vida de Thomas Merton.
Que tal revisitar estas páginas? Vamos a elas:
Havana, 1940
“Quando cheguei a porta principal de São Francisco, crianças em bando, suponho que escolares, entravam duas a duas por uma das portas laterais, e começaram a tornar seus lugares lá na frente da igreja, até encherem pouco a pouco as cinco ou seis primeiras filas. A missa já havia começado e o padre estava lendo a epístola. Apareceu então um irmão de hábito marrom, podendo-se ver que ele dirigiria as crianças na execução de um hino. Bem no alto, por trás do altar, São Francisco levantava os braços para Deus, mostrando os estigmas em suas mãos. As crianças começaram a cantar. As vozes eram muito claras e elas cantavam alto, a cantoria subia para o teto, num voo forte e direto, e sua claridade inundava toda a igreja. Então, quando o coro terminou e o sino para a consagração soou em harmonia com as notas finais do hino e a igreja se encheu do vasto rumor de gente se ajoelhando em toda parte, então o padre parecia plantado no centre exato do universo. O sino tocou de novo, três vezes.
Antes de qualquer um reerguer a cabeça, uma límpida exclamação do irmão de hábito marrom cortou o silêncio com as palavras: “Yo creo…”, que imediatamente todas as crianças repetiram com vozes tão altas e fortes e claras, e com tal unanimidade e tal significação e fervor, que algo ecoou dentro de mim como um trovão e, sem ver nada nem perceber nada de extraordinário por intermédio de algum dos meus sentidos (meus olhos só estavam abertos precisamente para o que ocorria na igreja), com a certeza mais absoluta e inquestionável eu soube que diante de mim, entre mim e o altar, nalgum ponto no centro da igreja, no alto, no ar (ou em qualquer outro ponto, posto que em lugar nenhum), mas diretamente diante dos meus olhos, ou diretamente presente para alguma indefinida percepção minha que estava além da dos sentidos, Deus estava ao mesmo tempo em toda a Sua essência, em todo o Seu poder, Deus na carne e Deus em Si e Deus cercado pelas faces radiantes dos milhares, dos milhões de números inimagináveis de santos contemplando a Sua Glória e louvando o Seu Santo Nome. A certeza inabalável, o conhecimento claro e imediato de que o céu estava bem na minha frente me atingiu corno um raio e me percorreu como um clarão e pareceu me levantar, puro, do chão”
Merton na Intimidade (Fisus, 2001), pág. 17-18
Louisville, 1958
“Em Louisville, em uma esquina de Fourth e Walnut, no centro comercial da cidade, fui subitamente tomado pela consciência de que eu amava todas aquelas pessoas, que eram minhas e eu era delas, que não poderíamos ser estranhos uns aos outros embora fôssemos totalmente desconhecidos (…) Tenho a imensa alegria de ser humano, de pertencer a uma espécie na qual o próprio Deus se encarnou. Como se os pesares e estupidez da condição humana pudessem me esmagar agora que percebo o que todos nós somos. Ah, se todo mundo pudesse dar-se conta disto! Mas isto não pode ser explicado. Não há como dizer às pessoas que todas elas andam pelo mundo brilhando como o sol!
(…) Fazer parte da espécie humana é um destino glorioso, mesmo se nossa espécie se dedica a muitos absurdos e comete muitos erros terríveis: apesar de tudo isso, o próprio Deus gloriou-se de vir a fazer parte da espécie humana. Parte da espécie humana! E pensar que essa percepção, que é um lugar comum, pode subitamente parecer uma notícia de que você é o detentor do bilhete que ganhou o primeiro prêmio na loteria cósmica.”
Reflexões de um espectador culpado (Vozes, 1970), p. 181
Sri Lanka, 1968
“Fui arrastado por uma onda de gratidão e consolo ante a óbvia clareza dessas figuras, a clareza e fluidez das formas e linhas, o desenho dos corpos monumentais harmonizando-se com os padrões da rocha. Paisagem, imagem, pedra, árvore. E a extensão de rocha nua em oblíquo afastamento para o outro lado da concavidade, aonde se pode voltar e apreciar diferentes aspectos dessas figuras.
Olhando-as, fui bruscamente e quase à força arrancado para ficar livre do modo habitual de ver as coisas, já em si algo exausto, e uma clareza interior, uma nitidez que parecia explodir das próprias pedras, tornou-se manifesta e óbvia. A pura evidência da estátua reclinada, o sorriso, o triste sorriso de Ananda em pé e com os braços cruzados (muito mais “categórico” que o da Mona Lisa de Da Vinci, porque absolutamente simples e sem rodeios). A grande questão, sobre isso tudo, é que não há enigma, não há problema, não há “mistério”. Todos os problemas jé estão resolvidos e tudo está muito claro, simplesmente porque o que importa está claro. A pedra, toda a matéria, toda a Vida, está imantada de dharmakaya – tudo é vazio e tudo é compaixão. Não sei quando em minha vida tive um tal senso de beleza e vitalidade espiritual a fluir juntas numa mesma iluminação estética. Sem dúvida, com Mahabalipuram e Polonnaruwa, minha peregrinação asiática tornou límpida e purificada a si própria. Quero dizer que eu sei e vi aquilo de que andava obscuramente à procura. O que ainda resta, não sei, mas agora já vi, penetrei pela superfície adentro e fui além da sombra e do disfarce.”
Merton na Intimidade (Fisus, 2001), pág. 416
Em Havana, ele tinha visto o céu; Deus pertencia a ele. Em Louisville, ele havia visto a raça humana; eles pertenciam um ao outro. No Sri Lanka, a rocha inerte pulsava com divindade, realidade, vida: toda matéria estava carregada de compaixão.
Deus, na sua infinita bondade, quer elevar-nos até si, dentro dos limites permitidos pela nossa débil natureza. Na vida de Thomas Merton, e isso nos causa uma boa inveja, Deus irrompeu sem alardes, numa lúcida e serena invasão na juventude, na meia idade e no fim de sua vida. Ele conseguiu “ver” a Deus no ordinário e no externo; o sensorial atingiu em cheio o espiritual.
Em tempos de nefastas notícias vindas do Sri Lanka, roguemos a Deus para que sopre em nós e naquele país os bons ventos da compaixão e da paz, e que a experiência sobrenatural lá vivenciada por Merton seja alento àqueles que sofrem por conta dos últimos acontecimentos dramáticos.
Cristóvão de Sousa Meneses Júnior