A vivência do tempo quaresmal remonta ao século IV. A quaresma é o período do ano litúrgico que antecede as festividades da Páscoa de Nosso Senhor Jesus Cristo. A Palavra de Deus proposta para reflexão nesse tempo vai nos conduzindo, pedagogicamente, para nosso interior, ao mais profundo, ao âmago da nossa consciência e, com isso, chama-nos à reflexão de nossas vivências e ações.
A simbologia do número 40, que está na origem da quaresma, é bíblica e relembra os quarenta dias do dilúvio, os quarenta dias que Jesus passou no deserto, e os quarenta anos de exílio do povo de Deus, significa um “tempo completo” A experiência de Jesus no deserto deve nos ensinar que a quaresma é tempo de conversão e tempo de afinarmos nosso ser com a vontade de Deus. A reflexão quaresmal “chama os cristãos a encarnarem, de forma mais intensa e concreta, o mistério pascal na sua vida pessoal, familiar e social, particularmente através do jejum, da oração e da esmola.”[1]
O trinômio quaresmal que deve fazer morada em nossa experiência nesse tempo é o jejum, a oração e a penitência. Papa Francisco, sabiamente, exorta:
Jejuar, isto é, aprender a modificar a nossa atitude para com os outros e as criaturas: passar da tentação de «devorar» tudo para satisfazer a nossa voracidade, à capacidade de sofrer por amor, que pode preencher o vazio do nosso coração. Orar, para saber renunciar à idolatria e à autossuficiência do nosso eu, e nos declararmos necessitados do Senhor e da sua misericórdia. Dar esmola, para sair da insensatez de viver e acumular tudo para nós mesmos, com a ilusão de assegurarmos um futuro que não nos pertence. E, assim, reencontrar a alegria do projeto que Deus colocou na criação e no nosso coração: o projeto de amá-Lo a Ele, aos nossos irmãos e ao mundo inteiro, encontrando neste amor a verdadeira felicidade.[2]
A experiência da oração, proposta como modelo pelo Papa Francisco, não pode ser vivenciada sem a experiência do recolhimento interior, o qual possibilita nossa presença em nós mesmos e o reconhecimento da verdade de nosso interior. Thomas Merton em sua clássica obra Homem algum é uma ilha, destaca:
O recolhimento não deveria ser visto como uma ausência, mas como uma presença. A primeira coisa que ele realiza é a nossa presença a nós mesmos. Depois nos faz presentes às realidades mais importantes do momento em que vivemos. E nos faz presentes a Deus, presentes a nós mesmos em Deus, presentes a tudo o mais em Deus. Mas, sobretudo, é a presença de Deus que ele nos traz e que dá sentido a todas as outras ‘presenças’ que dissemos.[3]
O recolhimento do jejum, da oração e da esmola é interior, íntimo, discreto e afetivo. Não deve ser uma um estandarte carregado pela rua com o desejo de ser visto. O recolhimento é uma proposta bíblica que deve ser levada a sério: “quando jejuarem, não mostrem uma aparência triste como os hipócritas, pois eles mudam a aparência do rosto a fim de que os outros vejam que eles estão jejuando. (…) Ao jejuar, arrume o cabelo e lave o rosto, para que não pareça aos outros que está jejuando, mas apenas ao Pai, que vê o secreto” (Cf. Mateus 6, 16-18). Exortados, devemos ouvir a voz que clama: “voltai para mim com todo o vosso coração, com jejuns, lágrimas e gemidos; rasgai o coração e não as vestes; e voltai para o Senhor, vosso Deus; ele é benigno e compassivo, paciente e cheio de misericórdia, inclinado a perdoar o castigo” (Cf. Joel 12, 12-13).
Thomas Merton em sua obra Tempo e Liturgia, tece uma reflexão teológico-espiritual sobre a quaresma denominando-a “nosso outono santo”, isto é, aquele tempo de renovação em que as folhas secas caem, e os troncos ficam vazios para se preencherem renovadamente com a força da nova estação. Merton, com a linguagem que lhe é toda própria, exprime a teologia que está no originário deste tempo:
Até os momentos mais sombrios da Liturgia são cheios de alegria, e a Quarta-feira de Cinzas, início do jejum quaresmal, é um dia de felicidade, um banquete cristão. Não pode ser de outro modo, uma vez que faz parte do grande ciclo Pascal. O Mistério Pascal é, acima de tudo, o mistério da vida no qual a Igreja, ao celebrar a morte e a ressurreição de Cristo, penetra no Reino de Vida que Ele implantou, de uma vez por todas, por meio de sua vitória definitiva sobre o pecado e a morte. Devemos lembrar-nos do sentido original da quaresma, ver sacrum, a “fonte sagrada” da Igreja na qual os catecúmenos eram preparados para o batismo, e os penitentes públicos purificados, pela penitência, para a restauração da sua vida sacramental em comunhão com o resto da Igreja.[4]
Merton, mergulhado na essência daquilo que é próprio da liturgia e, intensamente, vivenciado na Trapa, não deixa de alertar para o verdadeiro sentido da celebração quaresmal. Sua mensagem nos previne em relação aos excessos “espirituais” que vemos muitos cristãos cometerem, mais atentos as práticas exteriores em detrimento das práticas interiores com seus fundamentos bíblicos. Segundo ele:
A quaresma, é mais tempo de cura do que de punição. (…) É uma preparação para o júbilo no Amor de Deus. E essa preparação consiste em receber o dom de sua misericórdia — dom que recebemos na medida em que lhe abrimos o coração, lançando fora o que não pode conviver com a misericórdia.[5]
A dimensão vivencial da misericórdia divina é dubla e igualmente comprometedora à medida que exige a vivência de sua dimensão ética. À medida que recebemos de Deus misericórdia, devemos também ser misericordiosos. “O jejum que desejo não é este: soltar as correntes da injustiça, desatar as cordas do jugo, por em liberdade os oprimidos e romper todo jugo? Não é partilhar comida com o faminto, abrigar o pobre desamparado, vestir o nu que encontrou, e não recusar ajuda ao próximo? (Cf. Isaías, 58, 6-7).” O jejum, a oração e a esmola, atitudes ressaltadas na quaresma são estritamente relacionadas e complementares, a vivência de uma dessas dimensões não exclui ou dispensa à vivência da outra.
Merton provoca-nos a misericórdia e a compaixão: “a quaresma é mais tempo de cura do que de punição.” O que em nós precisa de cura? Qual a misericórdia, que tendo recebido de Deus, estamos compartilhando com nosso próximo? Como está a dimensão da justiça em nossa vida e em nossa sociedade? Com a autenticidade que brota do coração mertoniano somos convidados a um sincero exame de consciência e ao propósito de viver esse tempo com todo nosso coração, com toda nossa alma e com todo nosso entendimento e com toda nossa força. (Cf. Marcos 12, 30).
Senhor, tem misericórdia. Tem misericórdia das minhas trevas, minha fraqueza e confusão. Tem misericórdia da minha infidelidade, minha covardia, meu andar em círculos, meu vaguear e evasões. Nada peço a não ser essa misericórdia, sempre, em tudo, misericórdia. Minha vida aqui no mosteiro de Gethsemani – um pouco de consistência e muitíssimas cinzas. Quase tudo não passa de cinzas. O que mais tenho apreciado são cinzas. Aquilo ao qual tenho dado menos atenção possua, talvez, alguma consistência. Senhor, tem misericórdia. Guia-me, faze-me desejar de novo ser santo, ser um homem de Deus, mesmo que seja em desespero e confusão. Eu não peço necessariamente claridade, um caminho plano, mas somente andar de acordo com o Teu amor, seguir Tua misericórdia e confiar na Tua misericórdia.[6]
Adriano Cézar de Oliveira
[1] PAPA FRANCISCO. Mensagem para a Quaresma de 2019. Disponível em: https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/messages/lent/documents/papa-francesco_20181004_messaggio-quaresima2019.html. Acesso em 05 de março de 2019.
[2] Idem.
[3] MERTON, Thomas. Homem algum é uma Ilha. Campinas: Verus. 2003, p. 186.
[4] MERTON, Thomas. Tempo e Liturgia. Petrópolis: Vozes, 1968. p. 116.
[5] Idem.
[6] MERTON, Thomas. Diálogos com o Silêncio: Orações & Desenhos. Rio de Janeiro: Fissus 2003, p. 121.