Blog › 07/07/2020

Sementes de destruição

Thomas Merton neste livro sobre racismo estabelece que a vida contemplativa não é uma fuga do mundo ao seu redor. A vida contemplativa não permite que seus praticantes escapem de seu tempo histórico, mas os ajuda enfrentar sua situação social.

“A fuga monástica para o deserto, em face do mundo, não é uma simples recusa a tomar conhecimento do que se passa no mundo, mas uma rejeição absoluta de todas as normas de julgamento que impliquem na adesão a uma história de frustração, egoísmo e pecado.”

NOTA DO AUTOR

A vida contemplativa não é nem pode ser uma simples evasão, uma pura negação, uma fuga do mundo em face dos seus sofrimentos, crises, confusões e erros. Antes de tudo seria uma ilusão essa tentativa. Ninguém pode retirar-se completamente da sociedade dos seus companheiros. E a própria comunidade monástica está profundamente integrada, para suas alegrias ou seus sofrimentos, nas estruturas econômicas, políticas e sociais do mundo contemporâneo. Esquecer ou ignorar esse fato não exime o monge da responsabilidade na participação de acontecimentos, ante os quais o seu próprio silêncio e o seu "não-tomar-conhecimento" poderão constituir uma forma de cumplicidade. O simples fato de “ignorar” o que está se passando pode vir a ser uma decisão política. Tem acontecido frequentemente que algumas comunidades contemplativas europeias, cujos membros individuais viviam absorvidos em preocupações fora deste mundo, apoiaram oficial e publicamente movimentos totalitários. Pode-se dizer, em tais casos, que o monge, em sua turgia, em seu estudo ou em sua vida contemplativa está de fato participando daquilo de cuja renúncia se congratula.

Não quer isso dizer que o monge seja obrigado a tomar compromissos partidários ou um contemplativo seja obrigado a assumir essa ou aquela linha política específica. Pelo contrário, deve o monge manter-se livre das confusões e falsidades das lutas partidárias. A última coisa no mundo pela qual eu aspiraria fora a existência de um movimento clerical ou monástico em política!

E, no entanto, sustento que a vida contemplativa do cristão não é uma vida de abstração, de recesso, que o concentre apenas nas essências ideais, nos valores absolutos, na exclusiva eternidade. O cristianismo não pode rejeitar a história. Não pode ser uma negação do tempo. O cristianismo gira em torno de um acontecimento histórico que mudou o sentido da história. A liberdade do cristão contemplativo não é a liberdade em face do tempo mas a liberdade dentro do tempo. Consiste na liberdade de ausentar-se e encontrar a Deus no mistério imperscrutável de Sua Vontade aqui e agora, neste momento preciso em que Ele pede a cooperação do homem para modelar o curso da história de acordo com as exigências da verdade, da misericórdia e da fidelidade divinas.

A fuga monástica para o deserto, em face do mundo, não é uma simples recusa a tomar conhecimento do que se passa no mundo, mas uma rejeição absoluta de todas as normas de julgamento que impliquem na adesão a uma história de frustração, egoísmo e pecado. Isso não implica, de modo algum, na negação leviana de que o monge também seja um pecador (essa afirmativa seria uma ilusão ainda pior), mas numa recusa definitiva de participar de todas aquelas atividades que não tenham outro fruto senão prolongar o reinado da mentira, da concupiscência, da crueldade e da arrogância no mundo dos homens.

A fuga monástica do tempo secular não é portanto um retiro em qualquer eternidade abstrata e sim um salto para fora do retorno cíclico do mal inexorável e para dentro do Reinado escatológico de Deus, em Cristo, o reinado da humildade e do perdão.

O adversário não é o tempo, não é a história, e sim a vontade má e a herança acumulada de um passado de mentira e de pecado. Esse mal, sim, o monge deve encarar de face. Deve mesmo denunciá-lo, se outros o não fizerem. Que significa essa “denúncia”? Deverá ser considerada como um ato político, no sentido de uma determinação expressa de influir na política? Indiretamente talvez o seja. Estou falando não apenas como monge, mas também como cidadão responsável de uma nação muito poderosa. Não é entretanto minha intenção admitir que um Estado, que é e deve ser secular, deva ser guiado pelas perspectivas de uma Igreja escatológica. O que pretendo é explicar até que ponto eu e os cristãos que pensam como eu ficam moralmente obrigados a discordar.

Por esse motivo é que sinto, neste momento da história, uma grave obrigação de consciência no sentido de assumir as posições indicadas nas páginas que se seguem. Parece-me que essas posições se encontram em relação vital com as obrigações por mim assumidas quando emiti meus votos monásticos. Emitir um voto de pobreza parece-me ser uma ilusão se não me identifico, de certo modo, com a causa daqueles a quem se negam os direitos e são forçados, em sua grande maioria, a viver numa abjeta miséria. Emitir um voto de obediência parece-me absurdo se não implicar em uma profunda preocupação pela mais fundamental de todas as expressões da vontade de Deus:
o amor da Sua Verdade e do nosso próximo.

Abadia de Gethsemani
julho de 1964.

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