por Sérgio de Souza
O pai da escritora italiana Natália Ginzburg, embora não tenha sido exatamente um exemplo de sabedoria, ao escutar os membros de sua família a reclamar de tédio, ralhava:
“Sentem tédio porque não têm vida interior! Vocês não têm vida interior!”
Não farei deste pequeno texto uma introdução explicativa à vida interior, mas é interessante notar o quanto este tema tem a ver com o início do pensamento no Ocidente: “conhece-te a ti mesmo”, “só sei que nada sei”, “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”. Bastariam estas três expressões socráticas para nos situarmos.
Lembro-me de, adolescente, escutar Lya Luft dizendo literatura produz vida interior e que sem vida interior não se produz literatura. Depois, fui entendendo que algumas obras de autores que eu amava, como Clarice, eram tão somente jorros de vida interior transbordadas para as páginas dos livros. Não nos iludamos achando que qualquer um faz isso. Esta vida interior “jogada nas páginas” é fruto de muito trabalho e sofrimento anteriores ao ato da escrita. Lembro-me também do quanto um Dostoievski tinha a maestria para nos fazer penetrar na vida interior de seus personagens. Penso no quanto fiquei perturbado com Raskolnikov e seus debates interiores cheios de culpa, arrependimento, ódio e tristeza (incômodo que me fez abandonar “Crime e castigo” diversas vezes, dizendo que era muito “pesado”). E, por falar em russos, penso também no impacto que me causou a revelação da vida interior de um Ivan Ilicht, personagem de Tolstoi, e seu confrontamento solitário com a morte.
Para o cristão, a vida interior é um diálogo íntimo com Deus. Pode começar com a percepção de um diálogo interno conosco mesmos, que vai transformando-se, a partir do momento em que começamos a rezar, em uma conversa com Deus. “Quem fala muito consigo mesmo, quer falar com Deus”, já se disse. Para que se perceba esse movimento, é necessário prepararmo-nos para o silêncio e para solidão, ainda que por uns breves minutos diários. Não há hoje quem gaste menos do que quinze minutos diários com celulares e redes sociais. O que são quinze minutos reservados para olhar para dentro de si?
A observação contínua desta torrente de vida que acontece dentro de nós é vida interior. Aprender a observar, a escutar, a elaborar o pensamento, a narrar os sentimentos e acontecimentos a partir do próprio interior é o começo de um processo mental, espiritual, pedagógico e terapêutico. A terapia começa quando vamos adquirindo a habilidade de narrar a nossa vida interior para nós mesmos e para nosso terapeuta (psicólogo, professor, padre, pastor). Os mestres da vida interior são os que nos guiam neste complexo processo.
Sem vida interior, ficamos escravos das circunstâncias. Se o dia está difícil e cheio de acontecimentos inesperados, que tiram-nos da rotina planejada, ficamos mal. Se o dia corre conforme o esperado e cheio de boas surpresas, ficamos bem. Mas o homem de vida interior, que aprende a ler e narrar tudo a partir de seu íntimo, e caminha em um processo dialético de autoconhecimento e vida contemplativa, vai compreendendo a lida com as circunstâncias (não sem dores e dificuldades) e a moldar-se a partir delas e acaba por não ser empurrado para lá e para cá pelos fatos e acontecimentos. Se essa vida interior transforma-se em um relacionamento maduro com o Senhor, esse homem se aproximará do espírito sereno do salmista:
“Nada jamais há de abalá-lo: eterna será a memória do justo. Não temerá notícias funestas, porque seu coração está firme e confiante no Senhor. Inabalável é seu coração, livre de medo” ( Sl 111,6–8)
Sem vida interior é muito difícil vencer a confusão de nossos tempos pandêmicos e polarizados e as potencializações espalhadas pelo cotidiano: ânsias, tristezas, claustrofobias… Os registros de vida interior, coletados ao longo dos séculos pelos poetas, filósofos, místicos e artistas estão à nossa disposição e, ainda assim, por falta de leitura, escuta, silêncio e solidão, parecemos morrer de sede dentro de um oceano de possibilidades.
Tolentino Mendonça, pregando para o Papa Francisco, disse que a própria sede pode ser uma mestra da vida interior, mas quantos de nós não conseguimos ainda reconhecer a nossa sede? Faltam-nos mestres da vida interior, que nos ensinem a entrar nesta conversação com as grandes almas do passado, mais ainda, que nos ensinem a olhar para dentro de nós e reconhecer o diálogo conosco mesmos (que nos faz humanos!) e a elevar este mesmo diálogo a uma conversa íntima com Deus, nosso Pai, que “vê o que está escondido” (Mt 6,6).
E faltam-nos hoje não apenas mestres da vida interior, mas coragem para escutar, habitar a nossa própria pergunta, deixar-nos tocar pela nossa sede. Só precisa de um mestre aquele que se faz discípulo. E para ser discípulo é preciso já ter começado a caminhada, ter percorrido uma parte da estrada, ter sido tocado pelo mistério.