Blog › 15/04/2017

Sábado Santo

No Domingo de Ramos, refletimos sobre a fé, a esperança e o amor oferecidos a Jesus pela humanidade pecaminosa, na pessoa do Bom Ladrão. Na Quinta-feira Santa meditamos acerca da fé, esperança e amor que Jesus colocou em seus discípulos na noite da Última Ceia. Também dissemos que estas virtudes são teologais. Quer dizer: não são meras atitudes humanas que fazem parte do depositório de todo ser humano e emergem e crescem naturalmente por causa de nossa formação humana e nosso próprio amadurecimento. Segundo o Catecismo, “são infundidas por Deus na alma dos fiéis para torná-los capazes de agir como seus filhos e de merecer a vida eterna”. Mas se Deus é o dono destas virtudes, Ele também pode agir como seu usuário. E este é o tema da homilia nesta noite santa: a fé, esperança e amor que Deus Pai manifestou para seu Filho enquanto este vivia o seu mistério pascal.

Da prisão de Jesus até o seu sepultamento, o Pai deposita toda sua fé na pessoa de seu filho. Ele e só Ele sabe o peso infinito posto nos ombros do seu filho amado, o peso expresso pela cruz insuportável que Jesus leva para Calvário e debaixo da qual ele cai três vezes. Não há como nós possamos imaginar ou conceitualizar (e muito menos carregar) o peso de todo os pecados de todas as pessoas de todos os tempos e que São João chama “o pecado do mundo”. Os gregos admiravam o titã Atlas por suportar o mundo sobre seus ombros. Muito mais doloroso, muito maior o fardo, de ter de suportar não a criação natural, mas a criação deturpada, a força de gravidade de cada um de nós para baixo, para o auto-centrismo extremo, para o destino de criaturas arruinadas, a morte e a condenação. Antes de sua paixão, Jesus tinha exclamado, “Eu, quando for elevado, atrairei todos a mim”. Agora, com Jesus caído debaixo da cruz na via sacra, parece uma afirmação generosa mas exagerada, algo do gênero da afirmação de Pedro, que se declarou disposto a sofrer a morte com Jesus e depois acabou fugindo pela porta da emergência da casa do Sumo Sacerdote.  É possível, muito possível, que nesta altura Jesus duvidasse de sua capacidade de carregar este fardo até o fim ao invés de ser esmagado por ele.

Certamente é esta possibilidade que ele contemplava no horto da Oliveiras: não apenas a dor e o abandono, mas a possibilidade de fraquejar debaixo de um peso infinito, um peso que não se limitava à física mas penetrava até o âmago de sua alma e de lá fazia tudo para fazê-lo sucumbir, como todos os outros tinham sucumbido naquela noite, vítimas do peso de seus próprios pecados. Da noite da quinta até à tarde da sexta, é o Pai que fica firme em sua fé, que confia sem esmorecer em Jesus. Não é que não haja motivos para duvidar. O Pai é que entende que Jesus é um “compósito”, uma só pessoa em duas naturezas, e ele pode questionar se a solda vai aguentar a imensa pressão: se a humanidade de Jesus, unida à sua divindade, não ficará esmigalhada pelo peso que todos nós pusemos sobre ele, o peso de nossas iniquidades. Se ainda nós nos lembramos das leituras de ontem, recordamos como Jesus foi levado até o absoluto limite da tolerância, até de um Homem Deus: como ele perdeu sua aparência humana, como ele virou verme e não mais homem. O Pai pode pensar nos pés da estátua do sonho de Nabucodonosor, parte de metal, parte de argila, e como uma pedra bastou para quebrá-los e levar à destruição a estátua inteira. Será que a argila da humanidade de Jesus não se quebra atingida pela pedra de nosso mal sem medida? E o bem que sabe que Jesus precisa nos salvar não tanto pela força de sua divindade, mas na fraqueza de sua humanidade: pelo sim de sua liberdade humana, pelo amor de seu coração humano, pela obediência de sua obediência humana. Não é um Deus invencível que sofre na cruz; é a humanidade, a nossa humanidade crucificada que tem de suportar. Mas o Pai acredita no Filho, aquele que chamava seu Bem-Amado. Por todo o tempo da encarnação, o Pai contemplava a sagrada humanidade de Jesus, a sua acolhida sem limites da vontade e do projeto do Pai dentro de sua pessoa. O Pai sofre com o Filho, mas Ele não duvida. Ele sabe que o seu Filho não esmorecerá, não desfalecerá até que ele tenha justificado todos os povos e nações por sua morte redentora. Mesmo no Gethsemani, o Pai sabe antes do Filho qual será a resposta do Filho ao imenso desafio. Ele acredita em Jesus, e não será decepcionado.

No Sábado Santo, o Pai repousa toda a sua esperança em Jesus. A esperança é uma posse antecipada dos bens esperados. Sábado Santo não é um dia triste para Deus, um dia de derrota. Desde a criação do mundo, o sábado tem sido seu dia de folga, e este sábado não é nada diferente. Para ele o sábado é o repouso entre semana um e semana dois e assim é neste grande sábado. Esta vez, porém, o Pai espera, com plena confiança, que o dia vindouro quebrará o antigo ciclo, que a semana dois não será uma retomada da velha criação mas o amanhecer da nova. Ele espera que Jesus, ao despertar da morte, acordará toda a criação para uma participação em sua vida ressuscitada, “que o velho se tornará novo”, radicalmente novo, como ouvimos em uma das coletas durante a liturgia da palavra esta noite. “Desperta, minha alma, desperta. Eu irei acordar a aurora.” É esta a voz que o Pai espera ouvir de Jesus, com infinito maior desejo e certeza que o rei Nabucodonosor esperava ouvir a voz de Daniel ao amanhecer ressoando de dentro da cova dos leões. A esperança do Pai está repleta de alegria porque nela ele contempla não somente a restauração do universo decaído, mas a glorificação que ele amava acima de todos os outros, acima de todos eles juntos… e quem vai ficar com inveja?

Esta noite para o Pai, esta vigília, é a noite de amor. Aquelas senhoras santas que andavam pela cidade de Jerusalém, ainda vestida de seu misterioso véu de neblina, para levar especiarias ao túmulo de Jesus, eram dorminhocas em comparação ao Pai. Nós nos levantamos a uma e meia para não perder a ressurreição. O Pai nem pregou o olho esta noite (foi muito prudente que Ele tenha se repousado no sábado), tão cheio do sentimento de amor e tão ansioso para entregar a Jesus os seus dons pascais. Jesus terá dons pascais em abundância para nos doar: o Shalom pascal, o perdão de nossos pecados pela infusão do Espírito Santo, a reconciliação com o Pai e entre nós, a vida nova, limpa, brilhante e imortal. Mas isto é para depois. O Pai insiste em ser o primeiro a dar seus presentes para Jesus, o amado de sua alma, presentes que infinitamente excedem os dons dos reis magos. Ele dá esta noite ao seu filho fiel “por sua herança os povos todos e as nações, e há de ser a terra inteira o seu domínio.” Sim, esta noite, este constitui Jesus como rei do universo. Ele tem um segundo presente, tão precioso quanto o primeiro: “Ha Shem”, “O Nome”. Os judeus chamam Deus respeitosamente de “Ha Shem”, O Nome. É este mesmo nome que o pai dá de presente a Jesus: “e lhe deu o Nome que está acima de todo nome, para que em nome de Jesus todo joelho se dobre… e toda língua confessa ‘Jesus Cristo é Senhor’ para a glória de Deus Pai”. Como se diz em inglês, “good things come in three” (coisas boas vêm em três). O terceiro presente que o Pai entrega a Jesus esta noite é a sua esposa, a Igreja, nós e todos os irmãos e irmãs cristãos. A rainha resplandecente de beleza, a humanidade santificada e pacificada por amor; é ela que o Pai dá como esposa para as núpcias eternas. Ele sabe que esta esposa está totalmente segura entre os braços de Jesus, Jesus o novo Tobias que expulsa da alcova o demônio e toma para si seu noivo, movido por reverência por seu Pai e felicidade imensa na noiva que Deus separou para ele. “Assim como o noivo se exulta em sua noiva…”

Santo Inácio diz que o primeiro pedido no dia da Páscoa deve ser de poder alegrar-nos intensamente na alegria de Cristo. Teremos cinquenta dias para ficar alegres com a alegria que Jesus alcançou para nós. Consagremos esta primeira noite do Tempo Pascal em alegrar-nos com a bem-aventurança de Jesus, em ficar felizes por Jesus, aquele homem justo que confiando em Deus verá crescer sem limites a sua glória e seu poder. Depositemos como palmas ao lado de seu túmulo, transformado agora em um jardim, os presentes de nossa fé, nossa esperança, e nosso amor. Em comparação com os presentes do Pai, podem parecer pequenos e humildes. Mas se não são divinos, pelo menos são teologais.

 

 

Homilia de Dom Bernardo Bonowitz na Vigília Pascal de 2016
Mosteiro Trapista Nossa Senhora do Novo Mundo
Campo do Tenente, Paraná

 

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