Blog › 31/10/2018

Roga por mim

Santo Pai São Francisco

Em 6 de setembro de 1941 a presente oração foi composta, no início do último semestre de docência de Thomas Merton em São Boaventura. Dali a quatro meses, Merton terá encontrado a resposta – parcial – a esta oração ao mudar-se de São Boaventura para a Abadia de Gethsemani para tornar-se postulante na Ordem Cisterciense da Estrita Observância (O.C.S.O.), mais conhecida como “trapista”. Além de ser uma ilustração exemplar de como Merton admirava e respeitava São Francisco de Assis nessa época de sua vida e discernimento vocacional, esta oração ressalta uma série de temas perenes que são encontrados em outros registros dos diários, correspondência e escritos de Merton durante toda sua vida. A luta que Merton identifica aqui e em outros textos é com seu orgulho e desejo de sucesso, reconhecimento e fama literária. Além disto, a consciência desta tendência também dispõe o orante a discernir e a rezar pedindo humildade, algo cuja busca será interminável.

 

Creio que, em teu imenso e indizível amor por Jesus Cristo Nosso Senhor, podes olhar dentro de minha alma tacanha e tortuosa e ver o que ali existe antes mesmo que eu possa dizê-lo nas palavras banais, vulgares e estúpidas que escolhi e estão a ponto de fluir da minha caneta barata. Pela imensidão de teu amor ardente, imaculado e humilde a Meu Deus, sei que rogarás a Ele por mim e que posso alcançar tudo que, em minha oração, possa me levar a Ele em amor e humildade.

Portanto, rezo a ti, Santo Pai São Francisco, primeiro para que eu possa ser repleto de lágrimas e do amor de Deus, continuamente, não para que eu me deleite nessas coisas e sempre seja repleto apenas de consolação, mas para que me silenciem do orgulho e me encham de força e desejo de abandonar totalmente o mundo, mesmo permanecendo no meio dele.

E, quando não estou repleto da força da consolação, preciso ainda mais de tuas orações, Santo Pai, porque é então que as resoluções tomadas quando eu estava cheio de amor parecem a ponto de se despedaçar contra as minhas rochas de orgulho e amor próprio carnal.

Quando oro pedindo sofrimento e pego um resfriado – a doença mais ridícula do mundo: espirros na igreja, nariz escorrendo, suor, falta de devoção, tudo muito importuno -,  qual é o resultado? Fico zangado e impaciente –– e zangado comigo mesmo por estar impaciente. Mas zangar-me comigo mesmo por estar impaciente é uma grande e nova exacerbação do meu orgulho, nada mais.

Então volto a me deitar para um longo cochilo depois do jantar, perco a Noa, e me zango comigo mesmo por isto. Ir ou não ir me deitar faz pouca diferença para o amor de Deus. Mas o orgulho faz muita diferença: e me zango comigo mesmo por orgulho – teria sido bom se eu não tivesse ido me deitar. Talvez eu ainda estivesse resfriado, e não estou mais. Não importa. Mas fiquei zangado e impaciente, e esta foi uma grave imperfeição, porque não foi senão orgulho.

Santo Pai, tira de mim, por tuas orações, este orgulho; se não fosse por este orgulho, eu teria algo menos ridículo a escrever aqui. Ter tanta consciência do ridículo é apenas sinal de mais orgulho.

Se não fosse por este orgulho, eu também não me preocuparia tanto com a linguagem para expressar o que sinto: mas esta é só uma parte. Eu gostaria de escrever melhor sobre isto por respeito a Deus, que me deu estas graças pequenas e muito normais, conhecidas, tranquilas e generosas.

Mas também estou pensando que seria melhor escrever sobre isto com palavras boas, não banais, de forma que o leitor (se isto algum dia for lido) possa me respeitar e à minha experiência (e não à experiência em si – mas não é realmente minha experiência e, se eu reclamar respeito por ela, perco todo o bem que me trouxe, em amor e devoção a Meu Senhor).

Sim, Santo Pai, roga para que eu possa sempre escrever de forma simples e direta tudo o que tiver a escrever, que nenhuma desonra a Deus seja causada por eu escrever bobagens sobre Ele.

Mas, se eu for humilde, escreverei melhor, apenas por ser humilde. Ao ser humilde, escreverei o que é verdade, simplesmente – e a simples verdade nunca é bobagem e nunca é escandalosa, exceto para pessoas com peculiares perplexidades de orgulho.

Santo Pai São Francisco, roga por mim, pois nunca te recusarás a ouvir orações que me ajudem a me aproximar de Nosso Senhor. Então reza por mim para que eu possa dar aos pobres o máximo que puder. E que em breve eu seja capaz de passar fome para que outra pessoa não sofra. E que eu possa rir e cantar quando for desprezado por amor a Deus, e dançar e tocar música quando for insultado por amor a Deus, e chamado de louco, tolo e charlatão.

Roga para que eu seja pobre, manso; que tenha fome e sede de justiça e seja misericordioso; que eu seja um pacificador, puro de coração, insultado e perseguido em nome de Deus.

Roga por mim, Santo Pai São Francisco, para que eu faça todas estas coisas mesmo nunca tendo sentido fome a não ser por razões tolas (não consegui pôr as garras na geladeira) e nunca tendo sofrido a não ser por razões tolas (ressacas, bolhas por caminhar a noite toda em Exposições Mundiais).

Roga por mim, Santo Pai São Francisco, para que, em todas as coisas, eu cante a Deus de modo muito humilde e doce, como uma criança, e não me aborreça comigo mesmo quando, ao invés de tentações heroicas, eu só tiver tentações tolas, absurdas, humilhantes e estúpidas: quem eu acho que sou? As outras não tardarão em vir!

Roga por mim, meu Pai São Francisco, para que eu abra mão de tudo por Meu Senhor, para ser o menor de Seus filhos e o mais insignificante dos pobres por amor apenas, e que, em todas as coisas, eu possa ter a graça de rezar humilde, mansa, paciente e alegremente, e não na confusão do orgulho com os escrúpulos que o orgulho põe em nossas cabeças e os medos com que nos congela. Roga por mim para que eu tenha humildade suficiente para sempre orar pedindo humildade, pobreza e lágrimas.

Pela intercessão misericordiosa de Cristo Nosso Senhor, que reina eternamente com o Pai e o Espírito Santo, um só Deus, vida, alegria e deleite de todas as coisas e único objeto de todo amor! Amém.

Fonte: Thomas Merton, “September 6, 1941, Our Lady of the Valley”,
em Run to the Mountain: The Story of a Vocation
ed. Patrick Hart, Journals of Thomas Merton 1, 1939–1941
(São Francisco: HarperSanFrancisco, 1995), 405–7.
Tradução de Sieni Campos.

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