“Quem não sabe duvidar não pode ser homem de fé”
“Quem não sabe duvidar não pode ser homem de fé” (Novas Sementes de Contemplação, Thomas Merton)
Por Sérgio de Sousa
Henry Miller, no livro “O mundo do sexo”, escreve algo importante: “Com o nascimento da faculdade de questionar, a tristeza se instalou.” O homem que duvida está instalado na tristeza. A dúvida abre uma ferida que não para de arder. Quem não duvida não deseja. Quem não questiona não busca. Quem não se dá conta de um fundo de tristeza no cerne do próprio espírito (e, portanto, da alma humana) não sai do lugar. A tristeza que se instala após o nascimento da dúvida é uma “boa tristeza”. É o sentimento dos buscadores.
O intelectual, o pensador, o filósofo, o místico ou o poeta não têm medo da dúvida. São o que são porque fizeram da casa da dúvida a sua morada. Tomás Halik, um desses inquietos incomodadores do mundo, prega que devemos passar de uma pastoral que não admite a dúvida para uma pastoral das perguntas. O poeta Bernardo Souto, outro inconformado, escreveu em um poema que somos pobres “da mais triste e vil das pobrezas” porque perdemos a capacidade de nos espantar diante da realidade, “já não nos comove a canção dos pássaros nas manhãs acesas.” E dá a sentença final:
“Somos espantalhos
Cheios de certezas.”
Se há uma dúvida paralisante, também o excesso de certeza pode fazer de nós espantalhos. A certeza que incha e não abre espaço para o exame e o questionamento pode ser apego às mentalidades ideológicas que oferecem sistemas fechados de sentido e não permitem a liberdade do pensamento. Pior: podem esconder a angústia de almas que se comportam como crianças apavoradas diante de um mundo que parece absurdo e incompreensível. Essas almas buscam, como que às apalpadelas, tábuas de salvação e sistemas de sentido que aplaquem sua angústia. Não é esse o papel da religião: o sentido e a beleza que ela oferece, passam pela abertura do espírito, pela inteligência, pela vontade e liberdade humanas. Sobre isso, Karl Rahner tem uma palavra luminosa:
“Eu não acredito em Deus por ter conseguido dar resposta a todas as questões, para satisfação da minha mente. Eu continuo a acreditar em Deus porque rezo todos os dias”.
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Jesus chega a falar de um dia em que as perguntas não mais serão necessárias: “Naquele dia não me perguntareis mais coisa alguma” (Jo 16,23). Mas isso se dará no dia para além do infinito. Enquanto estivermos aqui, na terra da precariedade e formos anfíbios (“Os humanos são anfíbios — metade animais, metade espíritos”, C.S. Lewis, “Cartas do diabo a seu aprendiz”); filhos do céu, mas também do carbono e do amoníaco, seremos companheiros da Irmã Dúvida, e poderemos rezar com o cardeal Tolentino Mendonça:
“… Agradeçamos ao Deus fiel a todas as nossas perguntas, sobretudo àquelas para as quais não encontramos reposta; agradeçamos ao Deus que se debruça sobre as nossas procuras, que anota estes nossos passos balbuciantes, este nosso tatear como se na ausência víssemos o invisível…”
(Homilia no funeral de Eduardo Lourenço)