Blog › 02/09/2020

Que livro é este?

Um catequético Prefácio de Frei Carlos Mesters, OCarm, um dos principais exegetas bíblicos no Brasil, no opúsculo de Thomas Merton sobre a Sagrada Escritura intitulado “Que livro é este?”.

 

Prefácio

 

O livro de Thomas Merton pretende ser um pequeno prefácio ou introdução à leitura da Bíblia. Tem sentido prefaciar um prefácio? Introduzir uma introdução? Para que tantas portas? É que a porta, aberta por Merton, é uma porta diferente que merece um comentário.

1.

Enquanto a Bíblia é um livro humano, os critérios da sua interpretação são iguais aos que são usados na interpretação de qualquer outro livro humano. Mas enquanto diferente dos outros livros, a Bíblia exige uma atitude interpretativa diferente, sob pena de não se chegar a perceber a sua mensagem específica. Esta diferença não é uma diferença qualquer, livro é diferente um do outro, como todo mas é uma diferença que tem a sua origem em Deus, autor da Bíblia. Deus é diferente dos homens e nunca pode ser reduzido ao tamanho do homem.

A exegese científica, talvez devido a um complexo de inferioridade dos cristãos diante das ciências humanas, nem sempre deu a necessária atenção a esta diferença e insistiu unilateralmente na igualdade da Bíblia com os outros livros da antiguidade. Por isso, apesar da enorme revelação que nos fez sobre o conteúdo da Bíblia, ela dificulta a revelação propriamente dita, aquela que vem de Deus, e priva assim a Bíblia daquilo que esta tem de diferente e de verdadeiramente revolucionário com relação à vida que vivemos nesta nossa sociedade.

O livro de Merton chama a atenção para esta diferença de Deus que encerra uma crítica radical ao nosso modo de viver. Em geral, o objetivo dos livros de introdução à leitura da Bíblia consiste em informar o leitor sobre as coisas da Bíblia: a sua origem e história, a sua linguagem e evolução literária, o seu contexto histórico e cultural, os seus diversos autores e destinatários, o seu conteúdo e doutrina. O objetivo do livro de Merton, porém, é outro. Ele procura formar o leitor, para que tenha nos olhos a luz que faz enxergar. Para uma boa interpretação da Bíblia um defeito nos olhos é tão funesto quanto uma falha de conhecimento com relação ao texto. Muitas vezes, os intérpretes supõem a existência desta luz nos olhos dos leitores da Bíblia. E nisso cometem um grave engano.

Um binóculo, por melhor que seja, não faz o cego enxergar, mas aumenta a visão naquele que tem olhos para ver. O binóculo da informação científica em torno do texto bíblico, por si só, não é capaz de captar o verdadeiro sentido deste texto. Mas quando usado por quem tem a luz nos olhos, ele aumenta e firma melhor a percepção do sentido que a Bíblia possui para nós. O livro de Merton não fala do binóculo, pois não é da sua competência. Ele fala da luz que deve estar nos olhos, usem ou não usem o binóculo do método científico. Pois, o problema maior da leitura da Bíblia não está na Bíblia, mas em nós que fazemos a sua leitura. Para pouco serve um cego ter binóculo.

A Bíblia pode curar a nossa cegueira. O primeiro efeito desta cura é a consciência dolorosa de que somos cegos. O primeiro efeito da chegada da luz de Deus nos nossos olhos é a escuridão. Esta escuridão é o começo da revelação de Deus, a prova da insuficiência da nossa própria luz, a experiência da diferença que há entre Deus e nós. É a percepção clara e incomoda de que vivemos numa alienação radical de nós mesmos, da qual todas as outras alienações são apenas expressão e consequência, e sem a cura da qual as outras não podem ser plenamente analisadas nem curadas.

É assim que a mensagem “diferente” da Bíblia conduz o homem para casa, dando-lhe a consciência da opressão em que vive, fazendo-lhe ver que a verdadeira libertação do homem só pode vir de Deus, e oferecendo-lhe a possibilidade de libertar-se da alienação na qual se acomodou.

2.

O problema que hoje existe em termo da interpretação da Bíblia pode ser comparado com o homem que sofria de miopia na vista e que não sabia disso. Via tudo vago, como que coberto por um véu. Os objetos não se definiam para ele, dificultavam o andar e faziam com que se sentisse como que num mundo estranho, mesmo estando em sua própria casa. Ele procurou descobrir a causa do mal-estar e concluiu que esta devia estar na falta de conhecimento dos objetos que não se definiam para ele. Foi à procura de um remédio e encontrou um colírio muito recomendado. Aplicou-o aos objetos, esperando com isso tirá-los do vago e do indefinido em que se encontravam. Mas o remédio aplicado dessa maneira nada resolveu, para nada servia e tornou-se inútil na prática. O homem desacreditou do remédio, apesar dos elogios que este continuava recebendo. A escuridão do véu continuava como antes.

Hoje, os cristãos caminham com dificuldade pelas estradas bíblicas, apesar de a Bíblia ser o seu livro, sentem-se nele como que num mundo estranho. Tanta dificuldade e tanto texto incerto! Procuraram descobrir a causa do mal-estar e acharam que esta devia estar na falta de conhecimento dos objetos, dos textos. O remédio era estudar o texto, a fim de poder determinar melhor o seu sentido histórico-literal. Um grande progresso foi feito neste sentido. No entanto, as dificuldades continuam, as incertezas crescem, as dúvidas aumentam. Os cristãos parecem não encontrar mais na Bíblia aquela certeza e segurança de que necessitam para poder crer. Por quê?

Porque o diagnóstico foi unilateral. Se os textos da Bíblia são vagos e como que cobertos por um véu (cf. 2 Cor 3,14), não é só por falta de conhecimento dos mesmos, mas também porque o olhar de quem os olha e estuda está doente. O remédio encontrado para resolver o problema surgido em torno da leitura da Bíblia não serve só para ser aplicado no texto, no objeto; serve também como colírio que deve ser aplicado nos olhos do próprio intérprete. Este cometeu o engano de aplicar só ao texto aquilo que era também para ele mesmo.

O livro de Merton, por assim dizer, procura apontar o colírio e aplicá-lo nos olhos, para que estes, corrigidos e iluminados pela luz de Deus, descubram, com a ajuda da Bíblia, a voz de Deus que fala pela realidade da vida que hoje vivemos.

3.

Todo livro que é interpretado é submetido aos critérios daquele que o interpreta. O mesmo vale para a Bíblia. Muitas vezes, porém, a interpretação não vai além deste primeiro e necessário estágio do processo interpretativo. Nesse caso, o livro que é interpretado fica submetido e reduzido ao tamanho dos critérios daquele que o interpreta. O intérprete torna-se, então, o juiz supremo que julga o conteúdo e que faz a triagem, provando o livro interpretado de toda a crítica que poderia ter para o intérprete. Sobretudo o método histórico-analítico levou a um julgamento da Bíblia por parte dos intérpretes, que a aceitava ou rejeitava a mensagem da Bíblia conforme os critérios dos próprios intérpretes. Dessa maneira a Bíblia ficou reduzida ao tamanho da filosofia, da ideologia ou do dogma daqueles que a interpretavam. A ciência humana era a medida de todas as coisas.

Assim, o intérprete, apesar da quantidade enorme de informação que nos dava sobre a Bíblia, não deixava a própria Bíblia falar e comunicar a sua mensagem. Paradoxalmente, este livro, que visa à libertação plena do homem, tornou-se, muitas vezes, um instrumento de opressão mesmo na mão dos que se diziam os libertadores, mas que defendiam as suas próprias ideias mais do que o homem a ser libertado. Esse modo de proceder neutraliza a mensagem de conversão e transforma a Bíblia num meio de confirmar o leitor na sua posição já tomada, seja numa posição progressista, seja numa posição conservadora.

É necessário aceitar também o outro aspecto do processo interpretativo que implica na humildade do diálogo e que se dispõe a aceitar a crítica que possa vir do livro interpretado, mesmo que este derrube todo o universo ideológico que nós montamos para a nossa segurança.

O objetivo do livro de Merton, assim nos parece, consiste em chamar a atenção para este outro aspecto do processo interpretativo. Não é só o leitor humano que julga a Bíblia. E também a Bíblia que julga o leitor humano. Abrimos a Bíblia com a pergunta: “Que livro é este?”. Na medida em que houver em nós amor à verdade, a leitura progressiva da Bíblia transformará a pergunta e a devolverá ao leitor nesta forma: “Quem é você que lê este livro?”. O amor à verdade é o princípio básico de toda a interpretação que garante o seu êxito: “Quem é pela verdade, escuta a minha voz” (Jo 18,37).

A mensagem da Bíblia é essencialmente uma mensagem sobre Deus e sobre o sentido de Deus para a vida humana. Ela restitui ao homem uma nova visão do mundo, do tempo, de si mesmo. Devolve o homem a si mesmo na hora em que este se compreender a si mesmo como criatura amada por Deus. Restitui ao homem o olhar da contemplação. A Bíblia pode vir a ser o grande colírio que conserta os olhos com que encaramos a vida e a história.

 

Frei CARLOS MESTERS
Prefácio de QUE LIVRO É ESTE?
Thomas Merton (Vega, 1975) p. v-xi

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