Blog › 29/06/2021

Quando os corações se amam loucamente

por Jefferson da Silva Ferreira

‘’Chora amante rouxinol, este é um lugar de choro’’. Com estas palavras Hafiz, grande poeta e místico do século XIV, anuncia um dos maiores mistérios da vida humana. No começo essa sentença poética parece um tanto enigmática, mas logo vamos percebendo que esse local de choro é a própria existência humana, desnudada de todos os seus pirilampos, adornos, e penduricalhos que constituem o labor de um coração exaurido. Ele deseja mostrar que esse jovem amante do infinito está chorando de amor, porque se vê diante do calabouço sem fundo que é a morada de sua alma.

Dentro da perspectiva que embala o amante em direção ao ser amado, existe a beleza de um amor que não pode ser completado nesta vida, um desejo, tanto mais voraz quanto mais aliciante, de se reencontrar com o ser amado. E é assim que Deus anuncia sua relação com o homem no Cântico dos Cânticos. Se o amor apaixonado é a força mais poderosa deste mundo, também o é no outro. Se aqui ele move montanhas, no outro move todos os sete céus, com seus anjos e potestades. Para que o homem possa perceber o peso do amor de Deus e ter um gozo antecipado de suas delícias, o Senhor descreveu seu amor como o maravilhamento mútuo de um casal que busca se unir perfeitamente.

Nada pode parar aquele amor, nem mesmo mensurá-lo tomando como base as relações estéreis e ressecadas dos dias de hoje. Existe um paroxismo bastante interessante que consiste no seguinte: quanto mais este mundo vai se apagando para si, mais o homem é capaz de compreendê-lo, até o ponto que seu olhar se transforme puramente em compaixão e misericórdia. Creio que uma das cenas mais bonitas que podem explicitar esse dinamismo, seja aquela em que Virgílio se encontra deitado em sua maca, moribundo e desfalecente, e com seu olhar pesaroso vai olhando toda aquela multidão gritando pelo imperador, se exasperando cegamente, mesmo tão próxima da morte.

Essa emoção de ver o mundo sob o olhar da morte é a mesma que Adão sentiu quando viu que Eva havia comido o fruto proibido. Mesmo que por um instante, ele viu no rosto tristonho do ser amado todo peso da dor e da vergonha ao ponto de querer também partilhar da mesma sina, mesmo que isso significasse desobedecer ao seu Senhor. Quando Adão comeu o fruto, ele sabia que Deus o haveria de perdoar, mas, quando sentiu o tamanho do seu pecado, teve muito medo e quis se esconder.

O pai da humanidade não havia se enganado no que diz respeito ao perdão, Ele realmente o perdoou. O verdadeiro engano foi quando ele, ao comer o fruto, acabou se esquecendo do fato mais fundamental àqueles que aspiram ser amantes do Criador. O verdadeiro pecado é o não das criaturas, se calar ante aos gritos apaixonados de seu Senhor. Ora, as coisas são assim porque é possível pecar por distração, mas não é possível negar o clamor que se ouve.

Podemos dizer que o verdadeiro amor não é mais que um estado de atenção pura ao outro ou, como diria Thomas Merton, um jeito de se colocar de todo coração no que faz. Já quando falamos desse amor direcionado a Deus, ele é a completude do vazio, nas palavras do Cristo: Vá, vende tudo que tem e dê aos pobres, depois vem e me segue, assim terás o Reino dos Céus.

Ainda em razão desse amor, há outra imagem bastante bela no salmo 63:

— 2Sois vós, ó Senhor, o meu Deus!*
Desde a aurora ansioso vos busco!
= A minh’alma tem sede de vós,+
minha carne também vos deseja,*
como terra sedenta e sem água!

Tanto o sedento, quanto o apaixonado que deseja a amada, estão diante do mesmo dilema. Para o salmista o Senhor é o alimento para manter a vida, para o amante a amada é a fonte perfeita da felicidade. Há aqui duas necessidades que precisam ser atendidas: a necessidade do corpo e a necessidade da alma. E o salmo deixa bastante claro que essa água é a fonte mesmo da vida.

O problema todo é que esse momento de comunhão consciente é realmente muito raro e, quando vem, aparece silenciosamente dentro das antessalas da alma. Mas nem tudo está perdido, Cristo veio a este mundo para manifestar seu amor pelo clamor de Eva e pela compaixão de Adão: primeiro quando se fez sofredor, segundo quando se fez compassivo. Porque compaixão não é mais que se apaixonar junto, fazer que dois corações sejam apenas um.

Diante desse tema há um poema muito bonito de Bruno Tolentino em Paray-le-Munial, 1979, que diz bem assim:

 

[…] Talvez na pressa,

no pânico de Pedro, eu negue um dia
e trate de escapar, mas hoje não;
hoje sofro com fé e, sem poesia,

metrifico uma dor sem solução,
mas não vim negar nada! Faz efeito
essa dor: faz sangrar, mas faz questão

de defender-me como um parapeito
contra a queda e a revolta. Um Botticelli
despedaçou-se todo, mas que jeito,

se por Lear enforcam uma Cordélia
e encarceram a Ariel por Calibã…?
Alvorece, a manhã beata velha

enfia agulhas no Teu céu de lã,
antenas às Tuas cenas de TV,
e eu penso: ela morreu… Hoje, amanhã,

enquanto Te aprouver e até que dê
a palma do prego e o último verso à traça,
vai dor – mas Amém! Não há porque

amar a morte, mas que venha a Taça,
aceito suar sangue até o final,
como não… Tudo dói, menos a graça,

mata, Senhor, que a morte não faz mal!

Nas últimas estrofes o poeta cansa de fugir e negar a Deus e passa a querer assumir a dor de Cristo, por isso ele diz que não há porque amar a morte. Realmente o que está em jogo não é o amor a ela, mas o desejo de querer suar sangue como o Cordeiro de Deus. E é nessa imitação de Cristo, nesse clamor conscientemente assumido, que a criatura se qualifica para participar da perfeita felicidade trinitária.

Diante de um cenário tão belo, podemos, por um instante, sentir a vergonha de Adão quando olhava para Deus. Outro ponto que causa comoção é quando lemos o Cântico dos Cânticos e vemos os amantes suspirarem de saudades um pelo outro. Isso mostra que o amor não pode ser algo novo, Eclesiastes mesmo disse que não existe novidade debaixo do céu, ele é sempre uma reminiscência do ato criativo e sustentador do Pai.

Engraçado é que quando estamos apaixonados, sentimos que aquela paixão não é algo diferente do que está no poço da alma, por isso os amantes vivem jurando amor eterno. Não que aquela paixão vá durar eternamente, eles sabem que não, mas porque a sua raiz está além do tempo.

A beleza dessa relação é a marca da transcendência do mundo, algo que não pode ser negado, somente ensurdecido pelo não. Nesse poema de Tolentino há a estupefação do poeta ao ver que por Lear enforcam uma Cordélia e também encarceram Ariel por Calibã. Realmente é assim que invertem a ordem das coisas, emudecendo o que é mais valioso em troca do que é grotesco e confuso, tal como fizeram com Cristo diante de seu julgamento.

Depois de tudo que foi exposto, podemos finalmente entender a dor do rouxinol-amante. O nobre pássaro chora porque vê que esse amor está longe, percebe que não pode tocar a fonte sua de felicidade, então chora desejando o ser amado, estremece tal como um sedento a espera de água, mas nem tudo está perdido, porque ele sabe que o local de choro é aqui, sabe que a cruz é pesarosa, sofre e aceita sua consolação.

Ele aceita o sofrimento, do mesmo modo que a Mãe de Deus aceita a crucificação de seu filho. Ela, como o lírio, permanece de pé, mesmo diante dos vendavais. E é com igual ternura que o amor abre os portões da eternidade:

Canta a canção do lírio e do alecrim,
essa canção que és e que na treva,
na escuridão da carne, andava perto
da imensidade que te invade. E assim
como o imenso te ampara,
ó voz tão clara
que consolas e elevas,
vem, desperta,
matriz da eternidade e d’O sem-fim,
ó mãe de Deus, canta e roga por mim.

Bruno Tolentino: O Anjo Anunciador – Horas de Katarina

Jefferson da Silva Ferreira nasceu em Linhares, interior do Espírito Santo. Um amante pelos estudos artísticos e religiosos, sempre interessado em qualquer assunto que diz respeito ao estudo da vida mística e dos grandes santos. Publica textos de maneira intermitente pela internet, faz parte também do Persona Cinema, onde aborda o simbolismo presente nas grandes obras do cinema.

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