Blog › 07/05/2020
Prof. Catão: “O que dá unidade à minha história é Deus!”

Faleceu hoje (07/05) o teólogo e doutor em teologia pela Universidade de Estrasburgo, Francisco Catão
“Pensando naquilo que eu poderia falar sobre mim mesmo, de uma coisa não tenho dúvida: o que dá unidade à minha história é Deus! Em todos os momentos de minha vida busquei a Deus! E, se há algo a dizer, esse algo é Deus!”
Diz a Regra de São Bento que, aparecendo um aspirante à vida monástica, os monges não devem facilitar-lhe a entrada. Pelo contrário, devem deixá-lo bater à porta do mosteiro, por uns quatro ou cinco dias, injuriá-lo e criar dificuldades, a fim de ver se ele é capaz de suportar com paciência e persistir no seu pedido. Caso ele suporte e persista, os monges concedem-lhe o ingresso. Seus primeiros dias serão na hospedaria do mosteiro e somente depois comporá o grupo dos noviços, exercitando-se no serviço a Deus. Nessa fase, um monge mais velho zelará pelo progresso de sua alma e todos prestarão atenção si revera Deum quaerit, ou seja, se ele realmente busca a Deus.
Toda essa austeridade da Regra escrita no século 6 encontrou, certamente, na história do monaquismo cristão, maneiras de ser abrandada, e, em nossos dias, será impossível encontrar algum lugar do planeta onde um mosteiro faça o aspirante ficar quatro ou cinco dias diante de portas fechadas ou lance injúrias para testar sua paciência. O sentido do preceito, porém, é claro: se um aspirante procura a vida monástica porque ama a Deus e o busca, então é um bom candidato a monge; do contrário, o mosteiro não é seu lugar.

Partilha fraterna do Grupo de Leitura de São Paulo ocorrida no último dia 8 de junho de 2019, no Salão Paroquial da Igreja de Nossa Senhora do Brasil.
Da esquerda para a direita: Orlando, Vicente, Wilson, Antonio Carlos, Eliane, Prof. Catão e Laura (sentados), Maria Rachel e Célia.
FRANCISCO AUGUSTO CARMIL CATAO, nascido em São Paulo/SP em 08 de maio de 1927, encontrou nesse espírito beneditino o programa de sua vida. “Pensando naquilo que eu poderia falar sobre mim mesmo, de uma coisa não tenho dúvida: o que dá unidade à minha história é Deus! Em todos os momentos de minha vida busquei a Deus! E, se há algo a dizer, esse algo é Deus!” Depois de um sorriso sereno, Francisco Catão continua: “E como está raro ver alguém falar de Deus. Mesmo na Igreja [Católica], enfati-za-se mais a estrutura [administrativa] do que Deus. Os problemas religiosos são resolvidos em termos de estratégias, disciplina, evangelização, pastorais, mas pouco se fala de Deus! O resultado [da raridade com que se fala de Deus] é que, muitas vezes, ao pensarem em religião, as pessoas têm em mente mais as estruturas humanas, os personagens, os fatos curiosos, e não relacionam religião com Deus. Mas toda religião deveria centrar-se em Deus!”. Ri, então, e conta o seguinte episódio, vivido alguns dias atrás: “Convidado por um repórter a escrever sobre a pedofilia na Igreja, neguei-me a fazê-lo, argumentando que minha área específica é Deus, a Trindade, Jesus Cristo. Mas fiquei mais surpreso com a reação do jornalista, que parecia não ver relação entre Igreja e Deus!”.
Depois do riso, Catão retoma: “Fico abismado ao ver como a religião, muitas vezes, é dissociada do mistério de Deus e associada apenas a temas morais, econômicos, políticos. Mas Deus, que deve ser o centro das religiões, não aparece”.
O ser humano como
um ser de transcendência
Para quem conhece Francisco Catão, a centralidade de Deus não é uma afirmação retórica. Nos últimos 20 anos, ele tem se dedicado ininterruptamente ao ensino da teologia. De 1955 a 1965, também esteve mergulhado no mundo da reflexão teológica, sem contar, ainda, os anos de sua formação, no convento dominicano de Saint Maximin (departamento do Var, sul da França), quando leu, na íntegra e no texto em latim, a obra de Tomás de Aquino.
Mas a centralidade de Deus tem raízes mais profundas do que simplesmente as conjunturas da vida ou da atividade profissional de Francisco Catão. Essa centralidade se revela no pensamento que ele tem desenvolvido a respeito do ser humano como um ser de transcendência.
Em diálogo com a ciência dos nossos tempos, Catão parte dos dados estabelecidos pela antropologia contemporânea para dizer que a busca de sobrevivência foi o que provocou o aperfeiçoamento e consequente desenvolvimento do cérebro dos hominí-deos. A convivência específica da família e do clã humanos tornou-os cada vez mais capazes de distinguir-se de seus antepassados e abriu-lhes o caminho para uma vida especificamente humana. A originalidade humana, assim, deve ser buscada na relação interpessoal; prevalece o que hoje denominamos de partilha, e não apenas a sobrevivência da espécie. No caso humano, portanto, a necessidade da sobrevivência possibilita uma “abertura para além”, para a compreensão recíproca, o respeito, o amor e a amizade. Os humanos acedem a uma esfera nova de experiências, inacessível aos primatas.
Em continuidade com esse dado da ciência, o ser humano passa a ser visto radicalmente como um ser-para-o-outro: “como ser-para-o-outro, mulheres e homens se tornam tanto mais o que são chamados a ser quanto melhor é sua relação pessoal de um com o outro; quanto mais humano é o espírito que vigora no seu inter-relacionamento pessoal. Humanizar-se, pois, é sinônimo de espiritualizar-se. Significa, pura e simplesmente, viver, um com o outro, na atualização de uma relação verdadeiramente humana” (Francisco Catão, Em Busca do Sentido da Vida, Paulinas, 1993, p. 58).
A vida humana, por isso, não poderia reduzir-se apenas aos aspectos biológicos, animais, mas conteria uma característica própria: transcender a sobrevivência e abrir-se para um horizonte de sentido inteiramente novo. Dessa perspectiva, a religiosidade humana originária seria a capacidade de perceber o alcance transcendente da relação com o outro e ampliá-la para a relação com um Outro específico: o Transcendente a que se costuma denominar “Deus”. O ser humano seria, assim, naturalmente, capaz de Deus, e sua realização completa requereria o desenvolvimento dessa capacidade. O sentido divino vem ao encontro do ser humano e este pode acolhê-lo, tornando-se tanto mais humano quanto mais se transcender pelo mergulho nesse sentido.
Pensando na alteridade de Sartre, para quem o outro é mero objeto, Catão pergunta-se: “Mas, o que pensar da alteridade na peça sartreana Huis Clos? Lá, o outro não é chamado de inferno para o sujeito [L’enfer c’est les autres!]? O outro não me interpela? Mas Sartre não vê o outro como subjetividade, e, sim, como objeto. Por aí se vê o profundo anticristianismo sartreano”. Na experiência de Catão, o cristianismo e o sentimento religioso em geral são naturalmente possíveis quando se observa a vocação humana à partilha, à amizade e ao amor.
