Dom Bernardo Bonowitz, OCSO
1. Em inglês, quando falta a alguém uma base sólida para agir ou falar, diz-se dele: “Não tem nem uma perna sobre a qual se apoiar”. Desde a recepção do e-mail por meio do qual Waldecy me convidou para dar estas palestras, venho me perguntando: “Será que tenho pelo menos uma perna mertoniana?”
2. Coloquei me diante de um espelho de corpo inteiro e arrisquei. Sim, tenho A perna de uma comunhão de experiência com Merton.
Enquanto fiquei olhando para este espelho (monge não é necessariamente isento à vaidade), descobri que esta perna, assim como o chifre do Apocalipse, tinha a capacidade de multiplicar-se. Então decidi esperar até que o processo terminasse. No fim, havia quatro pernas que resultavam dessa comunhão de experiência com Merton: formatura na mesma faculdade (Columbia), “background” de convertido à Igreja Católica, um longo período na Trapa como mestre de noviços, e finalmente, e mais profundamente, o fato de ser monge.
3. Vocês sabem como é com pernas: tem o costume de andar. E assim foi essas pernas começaram a mover-se e a descrever um quadro, a constituir a moldura da vida dele (de Merton), como relembrada nos primeiros três volumes de seus diários: Merton como “columbiano”, convertido, mestre de noviços e monge. Portanto, gostaria de convidá-los a viajar comigo sobre essas pernas e entrar um pouco mais profundamente no mundo tão rico de Merton. Uma atração particular do mundo dos diários, vai ser a falta de “magistralidade”. É verdade que Merton sempre era artista, e também que compôs esses diários pensando na eventual publicação. Mesmo assim, comparados às obras como “Novas Sementes”, o que chama atenção nesses diários é Merton o discípulo (não o mestre) buscando ser plenamente fiel, e sobretudo lutando com as perguntas básicas: Fiel a quem?; Fidelidade significa estabilidade ou transformação?; Como discernir a voz que chama a verdadeira fidelidade e distingui-la de outras vozes que se disfarçam como voz de Deus e não são?; Como atingir uma fidelidade que inclui e incorpora toda a diversidade de seu ser? No terceiro volume, num momento especialmente penoso e escuro, Merton grita: “Quero a verdade, sim, e estou disposto a pagar qualquer preço por ela”. Talvez esse feroz agarrar-se à verdade, mesmo desconhecida, seja o que mais nos atrai a Merton.
Primeira perna: Columbiano
1. Quando Merton iniciou o primeiro volume destes diários, já tinha se formado como bacharel na Columbia. A ligação porém continuou muito viva. Por um lado, Merton funcionava em Columbia como instrutor para os universitários em literatura inglesa. Por outro lado, pensava em proceder ao curso de pós graduação, escrevendo uma tese sobre a poesia do jesuíta inglês G.M.Hopkins (proposta rejeitada, aliás, pelos professores). Além disso, alugava um pequeno “studio” em Greenwich Village, o sonho de “autorrealização” de qualquer “columbiano”.
Toda faculdade emite um aroma, um perfume, se quiser, que atrai certos jovens a entregar-se a seus “abraços” e depois deixa neles um resto de perfume para sempre. Não é por nada que o que domina o campus de Columbia College, entre a biblioteca e os escritórios do presidente, é uma enorme estátua de “Alma Mater” – mãe carinhosa, pia, devota.
Mãe não muda muito: aquela que ia alimentando, vestindo e formando Merton na década de 30, era basicamente aquela que “reinava no lar” no fim da década de 60, a época em que eu estudava ali. Que qualidades comunicava essa mãe juntamente com o seu leite? Um espírito crítico, polêmico, um humor mordaz e irônico, uma cultura ampla e urbana, uma consciência social, um idealismo romântico, com uma tendência de angustiar-se sobre as “grandes questões”. E Merton absorvia todas essas qualidades.
2. No começo do primeiro volume (1938-41) o Merton que mais se destaca é o esteta – o Merton que passeia nos museus, na World’s Fair. O que muito o preocupa é o assunto de “taste” (gosto): o que é de mau gosto, o que é de bom gosto. Afasta-se, propositalmente, do burguês, tanto na arte e literatura, quanto na vida política, na prática de sua fé, etc. Vê, nestes primeiros anos de vida cristã, a Igreja Católica como instituição que liberta da mentalidade burguesa – a herança artística e intelectual da idade média, a espiritualidade da liturgia e dos escritos dos místicos, conseguem colocá-la fora do âmbito do materialismo. Merton é capaz de apreciar o recôndito, a arte, etc, dos artesãos e gente pobre (em Cuba, por exemplo). Tem horror, por outro lado, do filistino da classe média (na exposição de Picasso ridiculariza a não compreensão dos visitantes).
3. Desde as primeiras páginas, Merton é muito entusiasta em suas descobertas: o maior escritor deste século (Joyce), a poesia mais profunda desta geração, ou, ao contrário, a cidade mais feia dos Estados Unidos. Fica facilmente e alegremente abalado – quer dizer, tem uma impressionante capacidade para ficar impressionado. No momento a nova intuição é tudo: tudo reestrutura-se ao redor do novo eixo, para depois, aos poucos, encontrar seu lugar mais “pensado” numa nova síntese. Talvez seja isto uma forma do dom contemplativo de Merton – um dom para sentir não somente o significado do percebido, mas também sua força e urgência.
4. Um contrapeso a isso é seu humor, tão frequentemente evidente em seus diários. Ele mesmo funciona como primeiro alvo desse olhar irônico: capacidade de reconhecer o ridículo – pretensões, pomposidade – exprimida no emprego frequente de gíria.
5. Um aspecto muito interessante e columbiano do jovem Merton, é sua preocupação com “questões sociais” – justiça econômica, regimes políticos, guerra e paz. Suas esperanças literárias (uma boa parte do primeiro Volume trata das tentativas malbaratadas de encontrar uma editora para seus romances), e seu apego à piedade pessoal – inclinações que em muitos casos excluem um compromisso político social – não o tornam indiferente aos assuntos da época. A meu ver é isso que o empurra para os franciscanos. Merton considera Francisco como poeta-servo dos pobres – transformador da sociedade e místico – e esta identidade multifacetada surgindo não de uma construção artificial, mas da vivência radical do seguimento de Cristo, Merton sofre, com grande seriedade, a questão da sua responsabilidade frente à pobreza do Harlem, à possibilidade de uma guerra (muitas páginas consagradas à reflexão sobre o tema de pacifismo – justificado ou não – isto é, o que ele vai fazer se for chamado ao serviço militar). A convicção de ser responsável como membro da sociedade, por sua sociedade, nunca vai deixá-lo. Provocará muito sofrimento pessoal quando tenta reconciliar a situação abrigada da abadia de Gethsemani em comparação com a pobreza e a fome do mundo; age como mola propulsora na suas considerações demoradas de fundar uma pequena comunidade monástica na América Latina, mostram explicitamente em títulos como “Confissões de um espectador culpado”. Nunca abre mão da ideia de que as realidades poeta-profeta-contemplativo não podem ser “clinicamente” separadas nele.
6. Cada volume dos diários nos expõe a angústia de Merton para saber “Quem sou eu?” E portanto, “O que devo fazer?” Cada volume propõe uma resolução, que realmente constitui uma iluminação, mas não uma solução definitiva. É um repouso, é uma conversão, é mais verdade – mas não é a paz que ultrapassa toda compreensão – ou se é, é a paz que vai acompanhá-lo na próxima etapa da peregrinação.
Entre os primeiros volumes, a resolução no primeiro de todos me parece a mais bonita – talvez por Merton ser muito “verde” ainda por não conhecer nada “profissionalmente” de esquemas de discernimento, de não ter nenhuma experiência ele mesmo como diretor espiritual. Interessante, esta primeira resolução é um “gethsemani”, isto é, é um entregar-se nas mãos de Deus sem saber o que isto vai significar. Padre, colaborador com a Baronesa de Hueck no Harlem, poeta: Merton não consegue escolher, nem interpretar os sinais da vontade divina. Numa tarde de outono de 1938, ele simplesmente se declara a disposição de Deus, sem restrições. Este ato inicialmente resulta numa experiência de vazio e medo (a primeira experiência mística dos diários), que Merton aguenta sem compreender. Depois essa “nuvem” desencadeia uma série de circunstâncias em que Merton fica ao mesmo tempo cada vez mais confuso e mais seguro e acaba com sua entrada em Gethsemani. O que leva a gente a afirmar que o primeiro romance de valor de Merton, era sua vida nesses anos em que atuava como personagem e não autor.
Segunda perna: Convertido
1. Quais são as características de um convertido? É uma pergunta com a qual me tenho ocupado muito. Refletindo um pouco, vejo as seguintes: a) um convertido é aquele que, de certa maneira, escolheu sua Fé – sua conversão é uma decisão consciente, pessoal e não uma herança familiar. b) um convertido, pelo menos do tipo de Merton, chega à fé pelo caminho de intensidade. Uma vaga veleidade não impulsiona alguém a fonte batismal. De onde vem a intensidade, fica discutível, mas intensidade tem. c) um convertido age por motivos pessoais. Não quero afirmar de modo algum que conversão é meramente processo psicológico sem base na revelação divina. Mas a luz dessa revelação entra em nós pela fresta de uma porta, e essa fresta é a nossa situação existencial que nos empurra para uma luz desejada, embora ainda desconhecida. d) Relacionado com isto é o fator de insatisfação. O grande fenomenólogo religioso, William James, no seu livro “Variedades da experiência religiosa”, divide o mundo em dois grupos: os que nascem uma só vez, e os que nascem duas vezes. Aqueles que nascem só uma vez são “ensolarados”, isto é, para eles as coisas andam bem, são contentes, sentem impulso para conseguir êxito no sistema atual, mas não para mudar o sistema; enquanto os outros sentem que “The times are out of point”, precisa-se de uma reforma radical, ou de si mesmo, ou de suas circunstâncias. Só os membros deste segundo grupo, ao ver de James, experimentam a tensão que vai resolver-se numa experiência religiosa profunda. e) finalmente, o convertido é aquele que se lembra de um outro passado e, portanto, de um outro futuro possível. A nova fé não é carne e osso dele. Isto não significa que não é de primeiríssima importância para ele, mas sim que nunca vai tomar-se absolutamente “natural”, ao ponto de não constituir mais “um assunto”. Em outras palavras, o convertido fica, queira ou não queira, com a convicção de que as coisas (doutrinas, prática, etc), poderiam ser outras diferentes do que são porque já eram outras. E quanto mais intelectual e intuitivo o convertido, mais ele vai encontrar-se com a questão de “alternativas”. Merton, como sabemos, era um homem altamente dotado, tanto em intelecto, como em intuição poética.
2. Claro que a realidade de Merton ser convertido marca todos os volumes dos diários. Gostaria porém de localizar-me nesta dimensão da vida dele nos primeiros dois volumes onde esta é a identidade que sobressai: Merton “o novo católico”.
O batismo de Merton já é um fato consumado na abertura destes diários. Há no primeiro volume algumas referências não muitas à pré-história de sua conversão à visita a Roma no fim do tempo de colégio e as orações que se sentiu impulsionado a emitir enquanto fazia turismo em várias igrejas romanas. Mas, comparadas às memórias familiares e escolares que ocupam muito espaço neste volume – férias com seu pai, recordações de seu avô, jogos com os meninos da escola – a memória de sua peregrinação pessoal da fé quase não aparece. Parece, ao contrário, um assunto tão delicado quanto a sexualidade – ou sentimentos pessoais – assuntos deixados por ele de preferência no “claro-escuro”.
3. O que chama a atenção no primeiro volume é o aparecimento de um segundo estilo literário quando Merton trata de suas aspirações religiosas. O próprio vocabulário muda palavras como “manso”, “querido”, “humilde”, que não se manifestam em outro contexto, aqui vem à tona. O tom geral é de um medievalismo da escola inglesa do século XIV – um tom claustral, por assim dizer. As técnicas poéticas são outras, o clima emocional desejado como resultado é outro. Vai ser a tarefa da sua vida (tarefa da qual ele se tornou sumamente consciente) – deixar os seus escritos espirituais tornarem-se uma só coisa com as poesias que brotavam de outras fontes de seu ser.
4. Ao mesmo tempo, não quero dizer com isto que faltava autenticidade ao pensamento religioso do jovem Merton. É verdade que podia ser arrebatado por um certo triunfalismo católico de Bloy, Belloc, etc, e que fatalmente quer apoderar-se o mais rápido possível da espiritualidade de João da Cruz e da Imitação de Cristo (assim faz todo noviço trapista até os dias de hoje). Mas, simultaneamente, sua capacidade de captar não sentimentalmente ou literalmente, mas teologicamente, o significado dos estigmas de São Francisco de Assis ou a intuição existencialista de Kierkegaard no que diz respeito à definição da fé, indica um espírito penetrante que quer saber, e que é capaz de pensar duro para alcançar uma compreensão. Sabemos que usava o tempo livre nos anos como instrutor na faculdade franciscana de São Boaventura, para estudar em profundidade as obras de Duns Scotus.
5. O que Merton exigia da Igreja era perfeição – e pedia convicto de que a Igreja tinha as condições de providenciar o que ele buscava. Ele desejava uma escola de santidade e de serviço – uma estrutura de vida que fosse santa e que pudesse fazê-lo santo. Inicialmente, atraído aos franciscanos (os quais não o aceitaram no noviciado, aparentemente por ter engendrado um filho na Inglaterra), ele mesmo reconheceu que os franciscanos não teriam servido. O próprio S. Francisco de Assis permaneceria um farol para ele por toda a vida, mas os franciscanos atuais de S. Boaventura, com seu golf, drinques, contatos, dinheiro – ele percebeu que naquele ambiente ele teria sentido uma enorme frustração, ou teria cedido e perdido a pérola de grande valor. Importante afirmar que não condenava os franciscanos, nem questionava a santidade deles, mas não era a santidade na qual sonhava e a qual temia.
6. Isto ele encontrou em Gethsemani. Talvez só um monge saiba (monge convertido!) o que significa não suspirar à perfeição, mas encontrar a perfeição e não numa pessoa solitária ou isolada, mas numa santa comunidade – uma santa sociedade. É só ler a poesia que escreveu na hospedaria em dezembro de 1941 (e que termina o primeiro volume), enquanto esperava a entrada no postulantado (em imitação da poesia de Hopkins escrita em circunstâncias parecidas), para saber que Merton achou-se “em casa” – casa impossível mas real.
7. O segundo volume representa a aplicação das ideias do primeiro. Merton, por um lado, é uma exceção desde o começo – ou quase: não somente permitido mas encorajado a prosseguir sua arte de poeta e escritor. Mas não é isto que o absorve. É o desejo de alcançar a união contemplativa com Deus. Essa união – o desejo dela – torna-se a pedra de toque para Merton nestes anos. Identifica, intelectual mas também experiencialmente, que o monge atinge a meta através da comunhão profunda com Deus em oração a qual se prepara por meio da liturgia, ascese, silêncio, solidão, santa leitura. É isto acima de tudo que Merton reclama – as grandes lutas dessa época surgem precisamente porque o peso de outras tarefas (inclusive as de escritor), ameaçam o repouso contemplativo que ele almeja. Nestes primeiros anos Merton não liga muito (talvez até “desliga”) para os limites pessoais e espirituais dos monges e da instituição monástica. Fica bem concentrado na sua caminhada. Coisas que nos anos seguintes vão querer fazê-lo enlouquecer, ele engole com a maior naturalidade ou até justifica. Seria interessante pensar no relacionamento de Merton com Dom James se James tivesse sido o primeiro abade de Merton e não o segundo.
8. O medo de perder sua vocação de “puro contemplativo” (vocação que ele mesmo muitas vezes questiona e cuja definição fica elusiva) no ativismo (certamente relativo) de Gethsemani, dá início a um tema que se estenderá até o fim de sua vida. A possibilidade da mudança de comunidade/Ordem. Isto também faz parte da caminhada do convertido – quem mudou uma vez pode considerar outras mudanças quase igualmente radicais. Merton reconhece que o desejo de se transferir para uma outra comunidade melhor aqui, mais contemplativa, mais simples – é uma tentação clássica (desde Cassiano no Século V, e um motivo para o voto de estabilidade na RB), mas sabe também que existem “situações de limite” (sobre as quais São Bernardo fala), em que a transferência coincide com a salvação: só ali vou poder cumprir a vontade de Deus a meu respeito. O segundo volume contem referências frequentes aos contatos com monges, prelados e até amigos psiquiatras – Merton sempre pedindo e balançando diversos avisos. A meu ver não é somente a obediência religiosa que o retém em Gethsemani (muita angústia nas vésperas dos votos solenes, precisamente porque estes vão ligá-lo permanentemente à comunidade), nem uma covardia subjacente, mas seu carisma espiritual. Quer dizer, sua vocação divina é ser monge trapista em Gethsemani, e nos momentos mais ricos e gratuitos da proximidade de Deus, nos quais ele mais se sente ele mesmo e em paz, ele sempre reafirma esse pertencimento.
9. A realização de seus desejos por união contemplativa se manifesta no processo de ordenação sacerdotal e nos relatos de suas intuições espirituais. Nenhum leitor do segundo volume pode duvidar da seriedade e até do pasmo com os quais ele se aproximava da sua ordenação como padre. Querer ser padre: isto o tinha marcado desde o seu batismo quando rejeitado pelos franciscanos, foi a impossibilidade de ordenar-se que mais ele lamentava. Agora o impossível estava acontecendo e Merton se preparava o mais fielmente possível, por estudo, leitura, oração, abnegação. Possuía também uma alegria quase de menino tão espontânea e borbulhante em pensar que ele ia realmente celebrar missa, ouvir confissões, etc. Isto não é sentimentalismo – seu conceito de ministério sacramental tem raízes na visão paulina do corpo de Cristo e é alimentado por um amor forte e profundo por Jesus e Maria (seria interessante estudar o elemento estável mariano em sua vida e seus escritos, e suas transformações – Provérbio, Sabedoria). Fica tão esmagado com a realidade de sua atuação sacerdotal que às vezes fica tonto ou até desmaia na igreja.
10. Por outro lado, perto do fim do segundo volume ele descobre em poucas páginas os diversos níveis da sua consciência. Empregando a imagem do mar, fala da atividade que se realiza na superfície, depois no fundo do mar – onde aparecem os peixes, floras marinhas e monstros da lectio divina, meditação, sonhos – toda a vida receptiva espiritual, e finalmente, de uma vida que sobe de debaixo do fundo do mar, que o atinge, surpreende e transforma. Este terceiro nível evidencia uma vida contemplativa já verdadeiramente em ascensão, isto é, onde começa a predominar a misteriosa e soberana ação de Deus, e essa reflexão marítima pode servir como um pequeno tratado sobre a integração da pessoa com sua profundezas.
Terceira perna: Monge
1. Então acontece algo aparentemente inesperado. Pouco depois de sua ordenação, Merton é nomeado mestre de professos trienais, e após alguns anos, mestre de noviços. Não é que Merton nunca considerasse a possibilidade de exercer autoridade na Ordem. Várias vezes, enquanto o abade/a comunidade refletiu sobre uma nova fundação, Merton imediatamente imagina a si como o superior fundador. Interessante que nunca chegou a descobrir o humor nessa ambição. Cada vez preocupa-se com os detalhes da futura fundação; cada vez fica genuinamente aliviado quando não é nomeado.
2. Agora porém, a responsabilidade não é um sonho nem um pesadelo, mas dado da experiência. O que implica ser mestre? Em primeiro lugar (sobretudo para alguém tipo Merton), significa perder a distinção entre horário de trabalho e “intervalos” – esses períodos tão preciosos que o monge comum pode e deve dedicar à leitura e oração. O mestre tem responsabilidade para responder a toda pergunta, doença, angústia, etc, do noviço para acompanhá-lo na viagem dantesca do “mundo” para o “claustro”. Ninguém sabe quando o noviço vai sentir necessidade de apoio, conselho e sobretudo, escuta. E tudo isso o mestre tem que providenciar. Os contornos firmes da “minha vida contemplativa” desaparecem.
3. Em segundo lugar, o mestre é pai. Acabou a atitude monástica de cuidar de si mesmo e evitar toda curiosidade sobre os demais. O mestre deve viver “igualmente” a vida dos formandos, assim como a sua. Ou seja, a sua vida se vive criando os novatos. Não é simplesmente a exigência da disponibilidade exterior que cai em cima dos ombros do mestre. Segundo toda a tradição monástica, o mestre tem que ser intercessor, médico, amigo do noviço. O mestre deve alimentar o noviço com sua própria vida espiritual.
4. Assim o mestre fica novamente – e constantemente – exposto às perguntas básicas da vida monástica – não tanto as perguntas relativas às pequenas práticas, mas aquelas que tem a ver com valores. Pode ser que o noviço se dê facilmente por satisfeito com respostas “pré-moldadas”. Isto não basta para o mestre. Enfrentado com essas perguntas, é obrigado a repensá-las mais fundamentalmente.
5. O mestre também encontra profundas resistências à graça da parte do noviço – pecado, “paixão”, complexo, o que quer que seja. O mestre recebe em si o impacto dessa resistência, ela é projetada sobre ele – carrega as dores dos jovens, queira ou não queira. Além disso, se ele é homem de oração e reflexão, assim como Merton era, este encontro com o mal vai forçá-lo a conhecer mais radicalmente o próprio mal. Frequentemente os comportamentos maus/sãos dos noviços vão trazer à tona dimensões pecaminosas ou doentias nele, que até então estavam escondidas. Ser mestre é portanto escola de autoconhecimento, arrependimento e conversão.
6. Como é que Merton lidava com essas responsabilidades? Acho que podemos afirmar: “gostava”. Não era um gostar sem nuance, mas gostava. Segundo os testemunhos de seus juniores e noviços (alguns deles vivendo hoje em dia conosco em nossa comunidade no Paraná). Merton era ainda mais cativante como professor e conselheiro do que como escritor. Seu lado brincalhão, irreverente, companheiro, há muito abafado, surgia e se regozijava. Sabemos que mesmo nos últimos anos no eremitério, Merton voltava aos domingos ao Mosteiro para partilhar em conferências facultativas, os frutos da sua reflexão sobre sua leitura (diz-se que nos últimos anos lia dois livros por dia). Imaginem então o gozo de poder partilhar com pessoas entusiasmadas e existencialmente envolvidas, o que para ele e para eles era o mais importante.
7. Gostava também porque o cargo insistia que servisse e amasse como não havia feito antes (questão de amor sempre atual para o monge: Será que eu sou capaz de amar?). A instrução intelectual na aula era só o topo do iceberg. Em direção espiritual, no acompanhamento dos jovens nos altos e baixos do processo de encaixar-se na vida monástica trapista, Merton descobriu a paternidade do padre – o ser ligado, o ser gerativo. A rigidez e a frigidez de alguém que fazia tantos esforços para conseguir a castidade e manter-se totalmente livre por Deus, iam derretendo. Estes são os anos em que Merton começa a poderosamente identificar-se com a gente de Louisville (a experiência mística de Walnut e 4th), os povos da America Latina, os membros de outras religiões. A expansão exigida para verdadeiramente amar aos seus noviços, uma vez iniciada, vai derrubando fronteiras. E com a expansão afetiva vem a expansão intelectual. Agora o vemos lendo Einstein, Gandhi, Koestler, Heschel, Bulgakóv, Evdokimov, Freud, Marx. Uma porta abre-se nele permanentemente – “Para mim é importante ler tudo e sobre tudo”. Nesta frase ele se afasta de uma atitude clássica do monaquismo. Mas ele descobriu que pertencendo aos noviços, ele tem que pertencer a si mesmo. É mais do que coincidência que ele descobre G. Marcel a essa altura, e sua exigência de fidelidade a si mesmo.
8. Ao mesmo tempo o cargo provocava sofrimento. Não era fácil para ele manter uma postura equilibrada entre ajuda e dominação. Via-se obrigado a reconhecer a tendência de controlar os jovens – não simplesmente ajudá-los a viver a vida deles, mas vivê-la. Também identificava (novamente) uma certa pomposidade, grandiosidade: o desejo de impressionar não se dava por satisfeito com suas proezas profissionais de poeta e escritor espiritual, queria reconhecimento nas conversas de direção espiritual, como se ele estivesse buscando aprovação da parte dos noviços.
9. Essas descobertas assumiram uma maior seriedade através de um curso ao qual assistiu nessa época na abadia de S. John’s, Collegeville, em Minnesota. Merton tinha preparado alguns artigos sobre a psicologia e a vida religiosa e o psiquiatra que conduzia o curso (Gregory Zilboorg) questionou não somente a compreensão de Merton, mas fez algumas colocações críticas a respeito do equilíbrio mental de Merton (o efeito desta avaliação não sai tão forte nos diários, mas sim na biografia autorizada, As Sete Montanhas Thomas Merton.
10. Sofrimentos de outros tipos o atingiram. As conferências e homilias de vários outros monges com os quais não sintonizava pessoalmente o preocupavam agora, enquanto prejudiciais à formação dos novos. Tudo o que achava insensato, sentimental, imaturo nas políticas da comunidade e nos pronunciamentos do abade (e a porcentagem dessas coisas ia crescendo), provocava uma maior reação interior por causa dos efeitos possíveis nos jovens (talvez tivesse esquecido sua aceitação branda nos primeiros anos). Além disso, havia os momentos de fracasso – quando, por exemplo, um noviço que dava muitas esperanças queimou suas mãos de propósito, tomou banho totalmente vestido e teve que ser mandado para um hospital mental.
11. Tudo isso mexia com Merton. Interessante, o subtítulo do volume seguinte (4), 1960-63 é “Os anos fundamentais” e o título “A Volta ao Mundo”. Em grande parte, acredito que a energia interior que conseguia realizar uma tal volta, surgiu como resultado da experiência de ser mestre.
12. Nos meados do terceiro volume, Merton tem um sonho que ele considera de profunda importância pessoal – o que Jung chamava um “grande sonho” (a big dream). Sonha com uma jovem judia – não bonitona, mas misteriosamente atraente. Ela o abraça e até lhe dá um beijo. “Eu me encontrava gostando do procedimento”. Quando Merton pede o nome dela, a resposta que ele recebe é “Provérbio”.
Uma figura sobrehumana que busca intimidade (mesmo incutindo temor respeitoso), e depois comunica seu nome, é um tema recorrente em todo o Antigo Testamento (que Merton estava redescobrindo naquela época. Antes, duvidava abertamente do valor do sentido literal – o que o texto tinha significado originalmente para os antigos judeus. Agora, insistiu – temos que ler o Antigo Testamento como judeus, ou não vamos conseguir compreensão alguma.)
13. Este sonho resume e completa os anos de aprendizado de Merton. Nele ele junta a Bíblia e os Padres da Igreja. Na Bíblia o máximo dom e a revelação do nome dom que o anjo não concede a Jacó, nem Deus a Moisés (Eu sou o que sou é uma maneira de negar o conhecimento do nome). Revelar o nome é, introduzir o outro numa comunhão, identidade da vida é a consumação do encontro. Igualmente na tradição patrística, o beijo da boca é a experiência suprema o dom do Espírito Santo, a fecundidade divina que nos torna grávidos com a vida de Deus.
14. Uma jovem judia beija a Merton. Novos horizontes vão se abrindo. A sabedoria divina numa encarnação desconhecida une-se a Merton. Ele sabe pelo menos um pouco o quanto esta revelação deve ser apreciada. Unido à sabedoria, interiormente por um rito de noivado (cf. Ruysbroeck), ele pode proceder mais intrepidamente, ele pode declarar-se em favor da verdade, não verbalmente, mas existencialmente, ele pode colocar seu nariz em tradições estranhas, pode buscar fidelidade em si mesmo, pensando no Cristo que é seu verdadeiro ser.
15. A obra monástica nunca termina e Merton vai ser trabalhado até o fim. Só obra de arte e vida eterna tem resolução – e só a obra de arte tem resolução fixa. A vida humana monástica é uma participação cada vez mais profunda no mistério pascal. Certezas nunca questionadas se desfazem, compromissos radicais pedem uma nova avaliação. Guilherme de S. Thierry, um dos mestres de Merton, fala da tarefa do intelecto na caminhada mística como a identificação e “rejeição” de tudo o que não é Deus em nossas ideias, desejos, comportamentos, lealdades. O intelecto tem que gradativa e laboriosamente identificar o não puramente divino, a fim de que a nossa vontade, o nosso eros, possa perder-se cegamente, mas com absoluta segurança, no divino, no próprio Deus.
16. A década de 60 (década dos volumes 4 – 7 dos diários), vai testemunhar muitas sacudidas na vida de Merton, dadas por ele, e a ele. Essas sacudidas vão distanciar Merton interiormente de muito do que lhe era familiar anteriormente e uni-lo com causas e tradições até então não associadas com a Trapa. A maior solidão do eremitério e as oportunidades lá disponíveis para a oração, a leitura e a correspondência, vão intensificar e acelerar o ser girado do Merton no torno (imagem de João de Ford, padre cisterciense, sobre a vida de Jesus). Quem entende o apoftegma dos padres do deserto: “Todas as outras virtudes são alcançáveis, mas a oração continua é uma luta até o último suspiro”, percebe que a passagem para o eremitério não podia marcar aposentadoria espiritual para Merton mas, ao contrário, com diz S.Bento no primeiro capítulo da Regra, o combate singular do deserto de todo deserto.
Mas Merton vai acompanhado por Provérbio. Então nas palavras da poesia de João da Cruz, que ele saberia tão bem; ele andava
Na noite afortunado
em segredo pois que ninguém me via
eu mesmo vendo nada,
sem outra luz e guia
senão a que em meu coração ardia
Só ela me guiava
segura como a luz do meio-dia
Muito obrigado. Espero que tenham gostado das minhas pernas.
Dom Bernardo Bonowitz, OCSO
Abade do Mosteiro Trapista de N.Sra. do Novo Mundo (Campo do Tenente/PR)
Palestra promovida pela Sociedade dos Amigos Fraternos de Thomas Merton
8 de setembro de 1999 – Rio de Janeiro/RJ