O sentido da vida na hora da morte
Por Sérgio de Sousa
“A vida muda rapidamente.
A vida muda em um instante.
Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina.”
(Joan Didion, “O ano do pensamento mágico”)
O Brasil já contabilizou quase 270 mil mortes desde o início da pandemia, com mais de mil mortes diárias ininterruptas há mais de um mês. A morte, que nos últimos séculos foi sendo erradicada da vida pública, com a pandemia voltou à ordem do dia. Estamos circundados, mais do que nunca, pela “Irmã Morte” (São Francisco de Assis), que tornou-se nossa companheira cotidiana. Estamos quase obrigados, mesmo a contragosto, a fazer lida com ela. Este é um exercício quaresmal que jamais desejaríamos, mas que nos foi “dado”. Cabe-nos aceitar, e fazer deste tempo um grande “memento mori”.
Esta meditação sobre a morte, “Memento mori” (“Lembre-se de que você vai morrer”), é uma consolidada prática da espiritualidade cristã. São Bento escreveu em sua Regra: “ter a morte todos os dias diante dos olhos”. Conta-se que uma santa irmã, enquanto observava a areia caindo na ampulheta, dizia: “Menos uma hora”…
O estado de vigília diante da morte deveria ser comum para o cristão. Cristo contou diversas parábolas sobre a necessidade desta atenção. Não é um exercício mórbido, nem um gosto pelas coisas tenebrosas, mas a abertura da inteligência para a realidade, uma vez que a razão, segundo Luigi Giussani, é capacidade de dar-se conta do real segundo a totalidade de seus fatores; e, sendo assim, eximir-se de refletir sobre a morte seria uma alienação, pois a morte é um dos componentes inescapáveis da realidade. Se a arte da atenção é uma das vias da espiritualidade cristã, a meditação sobre a morte é parte imprescindível deste caminho: “Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas” (Lc 12,35).
Não se improvisa o enfrentamento da morte. Viver é organizar o luto. Melhor: viver bem é adentrar a figura de nossa própria morte antes que ela venha. É um processo anamnético que consiste em fazer memória do futuro. De um futuro que virá e que podemos antecipar pela reflexão. Todas as vezes que rezamos a Ave-Maria, por exemplo, fazemos a relação entre os dois momentos-chave deste tipo de exercício: “Agora e na hora de nossa morte”. Essa antecipação nada tem a ver com a ansiedade: é antes estar inteiro no momento presente.
Invocamos, para explicar, um trecho de Clodovis Boff:
“Escreve Paul Claudel: “Foste tu, ó meu Deus, que me escreveste de alto a baixo, e eu sou legível”. Ora, a existência aparece como um discurso cujo sentido só se torna legível quando chega ao fim. A partir do fim torna-se manifesto o curso de todo processo, assim como a partir do cume de uma montanha é possível ver as voltas da ascensão.”( “O Livro do Sentido”, vol 1)
Se só conseguimos enxergar o sentido da vida quando esta chega ao fim, é justamente através do exercício diário do “memento mori” que conseguimos, hoje, projetar a nossa vida a partir daquele dia em que nos encontraremos face-a-face com Cristo. Só teremos a posse total do sentido de nossa vida no momento da morte, mas todos os dias, ao examinar a própria consciência com vistas a antecipação da hora de nossa morte, colhemos o sentido da vida até onde é possível, lutando por ele diariamente, descobrindo um pequeno significado a cada dia, para viver a partir destas pequenas migalhas de sentido. Daí a importância deste fazer memória, que é tentar trazer para o presente, através da contemplação, o momento da morte: “agora e na hora da nossa morte”.
É Clarice Lispector quem nos oferece as consoladoras palavras que encerram esta nossa reflexão:
“Morri de muitas mortes e mantê-las-ei em segredo até que a morte do meu corpo venha, e alguém, adivinhando, diga: esta, esta viveu.”
Exercitar-se na memória da morte é “morrer de muitas mortes em segredo”, “até que a morte do corpo venha” e assim se vá descobrindo, de migalha em migalha, o sentido profundo de cada dia.
Até que chegue o dia derradeiro.