O presente, o abraço e o pedaço do coração
Dom Bernardo Bonowitz, OCSO
Última Ceia é uma festa de despedida. Jesus irá para uma terra distante, para onde os seus discípulos não podem segui-lo, pelo menos não agora. Ele reconhece que sua partida iminente lhes causa tristeza (“Agora, vós estais tristes” – Jo 16,22), assim como é motivo de tristeza para Ele mesmo. Mas esta não é sua intenção. Mesmo que esta ceia seja a última, Ele quer que seja uma celebração de sua amizade, da fidelidade mútua ao longo dos meses e dos anos do seu ministério. Para celebrar a fidelidade no momento de despedida, o ser humano dispõe de três meios: o presente, o abraço e o pedaço do coração.
Lemos que quando Santo Antão estava prestes a partir deste mundo, ele mandou a sua túnica de monge ao grande amigo, o bispo Atanásio, distribuiu as outras pequenas posses entre os seus discípulos. Lemos, do mesmo modo, que o grande beneditino inglês do século VII, Beda, o Venerável, na hora de sua passagem, pediu a um jovem trazer-lhe seu baú e repartiu suas poucas preciosidades – pimenta, lenço, livro – entre os amigos mais próximos de seu mosteiro. E Jesus? Bom, Jesus se tinha comprometido por um voto de pobreza. Não tinha nada, absolutamente nada para oferecer aos seus – nem pimenta, nem lenço, nem túnica – a não ser a única coisa que o mais pobre dos pobres possui: seu corpo. Este seu corpo é o presente que Jesus regala aos doze no momento da celebração final. Não é somente algo para confeccionar, para fazer (“Fazei isto em memória de mim”), mas algo para ter. É uma memória, sim. É uma “lembrancinha”. Guardai isto em memória de mim.
Mais precioso numa festa de despedida do que próprio presente (mesmo que ele possa ser sempre contemplado de novo e, assim, a presença da pessoa reavivada) é o abraço, o contato físico, o calor da vida transmitido, a aceitação e valorização total simbolizados pelo breve momento de pôr os braços em torno de um outro ser humano e com eles segurá-lo, e também entregar-se a ele. Lemos que São Paulo, ao tomar o navio de Éfeso, foi abraçado e beijado longamente por seus evangelizados porque sabiam que nunca iriam vê-lo de novo. Lemos em muitas vidas dos santos o relato de um solene abraço de despedida, antes do exílio, antes do martírio, antes da partida para a missão.
Não sei se vocês já pensaram alguma vez que nunca se fala de Jesus ter abraçado seus discípulos. Ele se tinha comprometido por um voto de castidade, e seu corpo não mais pertencia a Ele para servir como instrumento de afeto. Em vez de um abraço, Jesus comunicou a cada um deles um ato de serviço, de serviço corporal: o lava-pés. Este é o abraço que o homem mais solitário e celibatário pode dar, gastar suas energias num gesto reverente, humilde e desprendido, um ato que não chama a atenção para o doador, mas que é simplesmente dom comum, dom que até um escravo poderia prestar.
Numa festa de despedida, cada um dos amigos aguarda algo a mais, espera algo a mais algo muito pessoal que sai do coração do conviva de honra e entra no seu, algo destinado a ele e a mais ninguém. É o pedacinho do coração, é a parte do íntimo, do cerne da pessoa, símbolo vivo e eterno do laço entre os dois. “Estou deixando com você uma parte de mim mesmo” – e isto não como poesia, mas como plena realidade. Lemos que Eliseu esperava este dom do seu pai espiritual, Elias, “uma porção dupla do teu espírito”, e que o próprio Elias nem sabia se ia ser possível corresponder ao pedido. “O que tu pedes é algo muito difícil” (II Rs 2,9-10). Lemos que São Paulo, através de Onésimo, mandou a Filemon não uma parte de seu coração, mas o coração completo. Mas Jesus se tinha comprometido por um voto de obediência, e pertencia integralmente ao Pai. Não podia, se quisesse permanecer fiel, retirar a mínima parte de sua oferta filial, Ele, obediente até a morte. Impossibilitado de diminuir, nem por uma só letra, nem por uma vírgula, sua entrega absoluta ao Pai, convidou os amigos para dentro de sua obediência, de sua filialidade, a serem consagrados na verdade, assim como Ele se consagrava na verdade.
A festa de despedida de Jesus acabou sendo muito pobre e muito rica, muito despojada e muito farta. Em vez de um presente, cada um recebeu seu corpo, tudo aquilo que Ele possuía; em vez de um abraço, um ato de serviço, casto e próximo ao mesmo tempo; em vez de um pedaço do seu coração, um convite para entrar em sua filiação.
Eu sempre via a última ceia à luz do antes e do depois – do lava-pés e da paixão. Hoje a contemplo como uma verdadeira festa – última e única, diferente de todas as outras festas do mundo, a mais expressiva, a mais significativa de todas.
Sermões de um Trapista Brasileiro pág.63-66