Blog › 03/01/2020
O Nome de Jesus e a Oração do Coração
Neste dia em que celebramos o Santíssimo Nome de Jesus, voltemos nossa atenção para esta forma de oração permanente. A Oração do Coração está intimamente ligada aos Relatos de um Peregrino Russo, personagem que preferiu um caminho distante das convenções e conversações humanas, o que o levou a um verdadeiro batismo de fogo na consciência.
por Dom Bernardo Bonowitz
1.
Os principais eruditos acerca da “Oração de Jesus” estão de acordo que a oração de Jesus tem várias formas e que nenhuma delas, em particular, seria a melhor, a mais autêntica, a mais original. O único requisito para uma genuína “oração de Jesus” é que ela inclua, de algum modo, a invocação do nome de Jesus (a forma mais breve sendo simplesmente o nome “Jesus”) e que seja uma “oração”. Como oração cristã, ela deve significar, ela deve viver de relacionamento e, neste caso particular, ela deve expressar uma petição, como o id quod volo dos Exercícios Inacianos.
2.
Na sua fórmula mais conhecida, popularizada através do séc. xix pelo O Caminho do Peregrino – “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tende piedade de mim, pecador” – a oração é muito rica e consiste pelo menos de cinco elementos. Em primeiro lugar, é uma oração de fé no poder divino de Jesus e em seu desejo amoroso de atender às minhas necessidades – Senhor Jesus Cristo (de acordo com os Padres, estas três palavras já constituem um “Credo”). Em segundo lugar, é uma oração de contrição. Quem quer que reze esta oração com frequência, está contente em se conhecer como pecador, considera este título uma descrição acurada e o utiliza para expressar sua indigência inata – tanto ontológica quanto moral. E é, em terceiro lugar, um grito de misericórdia: “Tende piedade de mim”. É o incessantemente repetido “Eleison” da Missa. Aceitando-se como pecador, aquele que reza sabe que o Santíssimo Deus continuamente o chama à santidade. Considerando-se digno de castigo, ele olha para a imensa misericórdia de Deus para que “não olhe para os seus pecados, mas para a fé que anima a Igreja”. Em quarto lugar, é uma oração de confiança. Quem quer que reze esta oração não pretende “rezar como os pagãos”, rezar por rezar. Ele assim reza porque no meio de sua contrição há a convicção de que ele será atendido, que Cristo está passando por este caminho precisamente porque sabia que este pobre mendigo espiritual estaria ali e que ele queria cobri-lo e aquecê-lo com o manto de sua misericórdia. Quando colocamos a oração de volta ao seu contexto escriturístico original, lembramo-nos que ela foi, primeiro, a oração de um mendigo cego (ou dois), que admoestado pela multidão a calar a boca e a deixar o mestre partir em paz, “só gritou mais alto”. O seu desdém pela reprimenda dada pelos seus benfeitores habituais, dos quais dependia de esmolas, só pôde brotar da confiança. Por último, podemos ir tão longe a ponto de chamar esta oração, de ação de graças. Não, talvez, para o mendigo que inventou a oração, mas sim para todo outro pecador que a tenha rezado depois, por haver, no fundo, a experiência de ter sido muitas vezes ouvido e atendido. Neste sentido, a oração de Jesus tem algo em comum com o Memorare – “Lembrai-vos… de que nunca se ouviu dizer que algum daqueles que tivesse recorrido à vossa proteção, implorado a vossa assistência, reclamado o vosso socorro, fosse por Vós desamparado. Animado eu, pois, com igual confiança…”
3.
Voltemos à misericórdia do centro da oração. O que é a misericórdia que a pessoa que reza está implorando, que nós estamos implorando? Basicamente, é uma oração para sermos reduzidos (concentrados) nos dois elementos fundamentais da existência cristã: humildade e confiança. Humildade – cada vez mais profunda – com relação a nós mesmos; confiança – cada vez mais profunda – com relação a Deus. Qualquer que seja a cura física que os mendigos tenham pedido a Jesus, desde então aqueles que rezam esta oração têm pedido “um coração semelhante ao vosso” – “pois eu sou manso e humilde de coração”. Esta oração, que deve, eventualmente, tornar-se “contemporânea” às batidas de nosso coração, é uma oração para se atingir um coração “crístico”. Como toda oração cristã, é uma mirada dupla: a nós mesmos e a nosso Deus. Não é à toa que ela começa com a palavra “Senhor” e termina com a palavra “pecador”. E seguindo o conselho de santos como Agostinho, Bernardo e Teresa d’Ávila, ela está mais focalizada em Deus que em nós mesmos. O autoconhecimento surge da atenção voltada a Deus. Como é mais difícil para a confiança em Deus emergir como consequência do conhecimento de nossa pecaminosidade!
4.
Podemos dizer, então, que a oração de Jesus constitui uma oração para experimentar entrar, plenamente, na morte e ressurreição de Cristo; de fazer-se pobre com a sua pobreza (Lembram-se como Paulo disse que Deus se tornou humano a fim de “nos enriquecer com a sua pobreza”?) e então ser levado à vida com ele pela glória do Pai. Há um ícone de Cristo (recentemente recebemos uma bela versão pintada à mão por um padre em Tremembé) que se chama “Extrema Humildade”. Ele mostra Jesus ao mesmo tempo em sua paixão e em seu sepultamento. De pé em sua sepultura, ele está, ao mesmo tempo, coroado de espinhos; suas mãos atadas ainda seguram o caniço da zombaria. É um Jesus que tomou sobre si completamente a baixeza de nossa condição. É o ponto mais baixo da sua e da nossa trajetória. É o fim da sua katábasis, mas não o fim da sua jornada. Dali ele será elevado às alturas da vida eterna, não por seu próprio poder, mas pelo poder do Deus no qual confiou: “Em Vossas mãos entrego o meu espírito”.
5.
A oração de Jesus é uma imersão livremente escolhida neste mistério. É o acompanhamento perfeito – a verbalização consciente – da escada da humildade da RB 7. O monge desce em espiral através da sua estabilidade na conversatio monástica: aceitando-se como limitado, “condicionado”, pecador, ordinário, mortal, sem uma justificação da sua existência. Ele é o pauper, servus et humilis do Panis Angelicus. Sem realmente entender claramente, o monge quer “chegar ao fundo das coisas”, “tomar o lugar mais baixo”. Ele acredita que se puder realmente, penetrantemente experimentar a verdade de sua existência – uma criatura pecadora que confia em Deus – tudo estará bem com ele. Ele estará livre e contente (Ivan Ilyitch: o saco preto – “Mas talvez eu não tenha vivido como devia”. A conquista da “morte”). A oração de Jesus é cultivada, como sabemos, na esperança de que venha a “se rezar”, mesmo quando dormimos, e que aquele que a reza venha a viver o “doce pesar” do penthos como um estado de vida.
6.
Assim, o objetivo da oração de Jesus é formar uma “mente” – “Tende em vós a mesma mente que Cristo Jesus” – ou, em outro vocabulário, um “coração”: “um coração contrito e humilde, Deus não despreza”. Este versículo do Salmo 50 foi a oração final de Teresa d’Ávila. Tendo atingido os cumes da experiência mística cristã, ela se viu “em casa” nas últimas horas, com a repetição de cor contritum, cor humiliatum. Tão perto de Deus então, nos portais do face à face com o Seu mistério, ela compreendeu que a oração mais verdadeira era a oração de sua indigência de criatura.
7.
Mais uma vez, vemos que a oração contínua não visa a uma experiência estável de paz. Em nossa ignorância, achamos que os bens mais altos são paz interior, descanso, experiência sensível de Deus, conhecimento espiritual, certeza. João da Cruz diz que estes bens são genuínos, mas que buscá-los é a marca d’água do “espírito imperfeito”. A oração contínua visa uma vivência contínua da Páscoa. A oração de Jesus une as duas alternativas de admoestações utilizadas na imposição de cinzas na Quarta-Feira de Cinzas: “Lembra-te de que és pó” e “Convertei-vos e crede no Evangelho”. Máximo, o Confessor, diz que o medo não reconhecido da morte é a fonte de toda ansiedade e, com isto, de todas as paixões. A pessoa que, pela oração de Jesus, chega a abraçar plenamente sua identidade humana e a experimentá-la na presença de um Deus que é Salvador, não tem mais nada a temer. Em vez de temer, ela aguarda. “É bom aguardar em silêncio a salvação do Senhor”. Paradoxalmente, tendo renunciado à busca da paz (sossego) como sua primeira meta, ele acaba a possuindo.
Bibliografia
1. Presença de Cristo: L. Gillet (Ora et Labora) 2. The Jesus Prayer: A Monk of the Eastern Church (St. Vladimir Press) 3. Caminho dos Ascetas: T. Collander (Paulinas) 4. The Name of Jesus: I. Hausherr, SJ (Cistercian Publications) 5. Power of the Name of Jesus: K. Ware (Fairacres Press, Oxford).