O doce sabor da liberdade
por Sérgio de Souza
Thomas Merton passou por um belíssimo processo de conversão, descrito em seu livro mais importante, o clássico “A Montanha dos Sete Patamares”. O livro narra um lento convencimento através de um processo de aproximação, na qual a razão foi mergulhando na literatura, na teologia e na filosofia, assim como nas artes e na arquitetura. Aos poucos, Merton, sem deixar de ser um jovem de seu tempo, de ler seus autores, de escutar a música que amava (Duke Elington era um de seus favoritos) e viver embebido no ambiente cultural próprio de sua época, foi adentrando o átrio misterioso e sagrado da verdade; ao mesmo tempo em que já caminhava, talvez ainda sem conseguir perceber, do lado de dentro dos umbrais da Igreja. Merton, à maneira de Agostinho, converteu-se antes à verdade do que a Cristo. Os autênticos buscadores, quando começam a viver em ambientes saturados de beleza e verdade, acabam por encontrar a Cristo. O rosto de Cristo se mostra, seja na leitura de William Blake ou Gerard Manley Hopkins, na presença de mestres sábios como Dan Walsh ou Mark Van Doren, nos mosaicos das basílicas de Roma ou na atmosfera litúrgica de um mosteiro trapista que fora visitar. Cristo está discreta e misteriosamente em tudo. Merton foi assim, rendendo-se ao mais belo dos filhos dos homens; sem nenhum rompimento brusco nem processo catártico, tornou-se católico, foi batizado, descobriu a vocação sacerdotal, fez-se monge.
Ao contrário dos grandes convertidos de seu tempo, muito embora, como bem notou o bispo Robert Barron, haja muito de drama e romance na Montanha dos Sete Patamares, a conversão de Merton não foi exatamente dramática. Não foram as grandes perdas pelas quais passou, especialmente em relação aos familiares (confesso que acho as passagens do jovem Merton ficando órfão desesperadamente tristes), o que causou sua conversão, mas uma imersão paulatina no ambiente eclesial de seu tempo o que fez com que o jovem franco-americano um dia se considerasse um convertido:
Ao tempo em que fiquei pronto para começar a escrever de vez a minha tese, isto é, por volta dos princípios de setembro de 1938, o trabalho básico da conversão se achava mais ou menos completo. E com que serena facilidade tudo ocorreu, mediante todas as graças exógenas que foram arranjadas ao longo do meu caminho pela Providência de Deus! Fez-se mister pouco mais do que um ano e meio, a contar do tempo em que li O Espírito da Filosofia Medieval, e Gilson, para me elevar da condição de “ateu” — conforme eu me considerava — a duma pessoa que aceitava toda a escala possível de experiência religiosa dando acesso ao mais alto grau de glória.
Não somente aceitei tudo isso intelectualmente, como comecei a desejar. E não somente comecei a desejar, como comecei a agir eficazmente; tive logo vontade de tomar as necessárias providências para completar essa união, essa paz. Desejei logo dedicar minha vida a Deus, ao Seu serviço.
“A Montanha dos Sete Patamares”
O exemplo da conversão de Merton é luminoso, sobretudo se pensarmos que ele seria um dos primeiros personagens de seu século a encarnar aquilo que se convencionou a chamar de precursor do Concílio. A conversão de Merton tem um sabor dialogal e deu-se porque a Igreja, já naquele tempo pré-conciliar, primeira metade do século XX, pisava o átrio dos gentios sem medo de contaminar sua sacralidade com o barro pagão. Teólogos como Romano Guardini, Hans Urs von Balthasar, Jean Danièlou, Henri de Lubac e Yves Congar, que eram sacerdotes, mas investigadores, que se metiam nas cátedras das universidades, eram professores, conversavam com os protestantes e com os leigos, liam Hegel e Nietzsche com liberdade, não eram homens hierarquizados (embora obedecessem a uma hierarquia); leigos como Jacques Maritain, Georges Bernanos, Etienne Gilson, Paul Claudel, François Mauriac, cujas obras e presença brilhava no meio secular (no Brasil havia Dr. Alceu, Gustavo Corção e todo o entorno do Centro Dom Vital) formavam a fauna e a flora católica daquela época. Eram homens de cultura que respondiam com a palavra e o testemunho aos anseios e questões de seu tempo. São inequívocas, por exemplo, as palavras do filósofo Remi Brague:
“Eu vejo hoje um forte processo de clericalização. Se paro para pensar nas décadas de 1950 e 1960, naquela época havia Gilson, Maritain. Havia ainda Claudel, Mauriac… Homens livres como esses não existem mais na vida cultural francesa. Quando a mídia precisa falar da Igreja, faz perguntas a algum eclesiástico.”
É nesse ambiente que Merton se converte. Não só sua obra, mas sua vida é precursora do estilo dialogal e da pastoral do Concílio Vaticano II. Eu, Sérgio, penso, que o Concílio é devedor, neste sentido, a esta efervescência cultural que acontecia nos arredores da Igreja nos anos que o antecederam. É um período sobre o qual vale a pena se debruçar para pensar na aplicação do próprio Concílio.
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Hoje, mais de 50 anos após o Concílio, ainda vemos a luta renhida do Papa Francisco contra o clericalismo e o triste fenômeno de tantos cristãos, sobretudo jovens, mergulhados em ambientes onde reina uma cultura engessada, separada do mundo, infelizmente sectária e cheia de vício religioso. Jovens que trocaram suas compulsões mundanas por vício religioso, cujo único assunto é Igreja e temas religiosos, que vivem na sacristia e que desejam e criam para si um gueto de música católica, roupas católicas, cultura católica, comida católica, ginástica católica… Ora bolas! Isso é subverter a palavra católica e sua universalidade! O catolicismo não separa, nem destrói nada, mas integra tudo. O Sun Day pagão (os povos antigos reverenciavam seus deuses dedicando este dia ao astro Sol, o que marca o nome que deram a este dia em inglês Sunday) transformou-se no nosso Domingo; o dia do sol pagão, transformou-se no dia do Senhor. A música católica é toda boa música que se produziu no mundo, desde o cantochão, do gregoriano, passando pelo protestante Bach, pelo maçom Mozart, até os spirituals dos negros afro-americanos, o jazz de um John Coltrane, até o soul de Stevie Wonder. A Beleza que se esconde atrás de toda beleza. Se todas as coisas têm seu ser no Logos, como é que o rosto do Verbo não se mostraria na beleza da poesia, das artes, na bondade de um homem caridoso ou na devoção de um pobre em oração no último banco de uma capela vazia num rincão perdido do mundo? Não há sentido algum em separar as coisas em católicas e não-católicas para que um católico possa consumi-las sem culpa. O mundo é de Deus. A criação, embora decaída, é boa.
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Ao mesmo tempo, é preciso dizer que é muito interessante que Merton, ao aproximar-se do monge hindu Bramachari , recebe um conselho, segundo ele, impossível de esquecer: “Existem belíssimos livros místicos escritos pelos cristãos. Você devia ler as Confissões de Santo Agostinho e A Imitação de Cristo.” Um monge veio do Oriente para ensinar um ocidental a aprofundar sua própria tradição. Depois, na maturidade, Merton, pelo aprofundamento de suas próprias raízes, dialogou e conviveu com amigos e representantes do hinduísmo, do misticismo sufi, do zen-budismo, do taoismo. É sua própria tradição, que tem o Verbo como fundamento, o que permite que olhe sem preconceito e com abertura para outras tradições e lá enxergue os sinais e as sementes da verdade. Esse passou a ser um caminho para Merton: como católico, era adepto fervoroso da missa tridentina (teve permissão para continuar a celebrando mesmo no pós-concílio) e do latim. E quanto mais mergulhava na solitária busca pela verdade, mais conhecia irmãos monges que também a buscavam e lhe estendiam a mão, como companheiros de viagem. Merton morreu em Bangcoc, cercado de monges católicos e budistas, enquanto falava de “marxismo e perspectivas monásticas”. Merton era um místico para dentro e para fora, sistólico e diastólico. Lia Santo Agostinho e rezava em latim. Ouvia Grateful Dead e enviava cartas para Lawrence Ferlinghetti.