Justificação, Santificação, Divinização
O Projeto de Deus nos seus Religiosos e Religiosas
Dom Bernardo Bonowitz, OCSO
Abade do Mosteiro Trapista de Nossa Senhora do Novo Mundo
Introdução
Este pretensioso título, além de querer impressioná-los, tem por objetivo comunicar que nós, religiosos, não somos nem aquilo que fazemos (algo que se afirma frequentemente), nem aquilo que somos. Nós somos aquilo que Deus realiza em nós através da sua salvação, completando e aperfeiçoando seu ato primordial de criação. Aquilo que somos e aquilo que fazemos é o fruto daquilo que Deus faz por e em nós.
Cada uma das pessoas da Trindade realiza um milagre em nós. Os três milagres são inter-relacionados e inseparáveis. Juntos, eles constituem nossa vida religiosa e nossa vida eterna.
Justificação: A Obra do Pai
Aquilo que o Pai faz por nós (em e por Cristo) é aceitar-nos.
Nós temos uma necessidade tremenda, ilimitada de aceitação. Aceitação é a validação essencial da nossa pessoa. Tão grande é esta necessidade de aceitação que nos tempos modernos inventamos a noção contraditória de “autoaceitação”, por meio da qual uma pessoa é ratificada em sua identidade por “aceitar-se a si mesma”.
Isto é uma impossibilidade: Aceitação é um ato de duas pessoas, a pessoa que almeja ser aceitada e a pessoa que aceita. Aceitação genuína é sempre um ato de um outro. A prova disto, psicologicamente, é a insatisfação e dúvida pervasiva que sempre restam quando tentamos desempenhar ambos os papéis.
Nenhuma outra pessoa humana pode nos aceitar plenamente. Nenhum outro ser humano possui a autoridade de pronunciar uma palavra final sobre nós (cf. 1 Cor 4,3). Nenhum outro ser humano é capaz de nos conhecer em todas as fibras de nosso ser, capaz de conhecer a verdade mais profunda sobre nós. Nenhum outro ser humano pode perdoar os nossos pecados (a questão pertinente dos fariseus, “Quem pode perdoar pecados senão Deus?”).
O Pai nos aceita, através da Cruz e Ressurreição de Jesus, num ato transformativo que é ao mesmo tempo juízo e absolvição, justiça e misericórdia, verdade e amor. O Pai nos aceita tal como somos – não escondendo os nossos pecados, não dizendo que eles não têm importância ou são comparativamente irrelevantes – mas assumindo-os no corpo de seu Filho e na cruz de seu Filho e libertando-nos definitivamente deles, para que nós possamos estar livres para “caminhar na novidade de vida”. Seu amor por nós é mais forte do que a morte que todos nós escolhemos para nós mesmos através do pecado. A morte é tragada pela vitória.
Esta aceitação é permanente (“Mas vós fostes lavados, fostes santificados, fostes selados”). Por ser verdade e por gratidão sempre guardaremos a memória dela, mas sem ansiedade de que Deus pudesse voltar atrás na sua decisão. Somos libertados do passado. A partir do momento deste ato de aceitação em diante – e nosso “aceitação de sermos aceitados” através da atitude fundamental de fé, nós nos tornamos os amigos de confiança, filhos e colaboradores de Deus.
A tradição beneditina comunica isto de modo muito belo no 12º grau da humildade (RB 7).
Como religiosos, precisamos nos perguntar se verdadeiramente experimentamos isto e não simplesmente consentimos a isto teologicamente. Basta fechar seus olhos por 5 segundos e perguntar-se a respeito e a resposta surgirá dentro de nós. É a experiência “fundante” da vocação cristã e religiosa.
Santificação: A Obra do Filho
O que o Pai aceita, o Filho consagra. Aproximando-se de nós por sua Encarnação e seu “habitar entre nós”, ele transforma e santifica tudo aquilo que o Pai abraçou no ato de justificação: todo o nosso ser. Ele nos refaz sem tirar de nós nada de nossa individualidade. Ele vive ao nosso lado e por atração nos assemelha a si mesmo. Ele é, como diz, Guilherme de São Thierry, “o mestre exterior”, um outro, mas um outro que nos convida para uma intimidade sem limites, e que, finalmente completará sua obra pelo dom do “mestre interior”, o seu próprio espírito, o Espírito Santo. A fronteira entre a exterioridade e a interioridade será o dom de si mesmo na Eucaristia.
O Filho “faz a nossa cabeça” por sua palavra, seus ensinamentos. Na sua palavra, ele nos abre a nos oferece a sua mente. A sua palavra não é algo inerte.
São Bento a descreve como um “fermento”- poderíamos dizer, uma bebida fermentada- o vinho novo. Se a bebermos, ouvindo-a, e a saborearmos, meditando-a, nós nos tornamos ébrios, mais livres da rigidez e limitações de nossos pensamentos habituais. Coisas loucas como o perdão de nossos inimigos, o amor àqueles que nos perseguem, o valor maior da pessoa sobre a prática, começam a fazer sentido. A vivência ao lado deste rabino é uma contínua “lectio divina”, onde pouco a pouco, assumimos a mente de Cristo. Inicialmente, concordamos com ele na medida em que suas palavras nos parecem sensatas (Rabino Alexandre); mais tarde, a nossa confiança cresce até a nossa confiança em sua palavra brota simplesmente porque é sua. (Shelley e o Evangelho).
O Filho “faz o nosso comportamento” por seu jeito de agir e interagir. “Discípulos” são aqueles que convivem com um mestre, o observam e o imitam, seja por osmose, seja (quando for necessário) por correção. Quase incrivelmente, embora subido aos céus, Jesus continua a estar no meio de nós, sobretudo, como tinha prometido, quando há dois ou três de nós reunidos em seu nome. Sentimos, delicadamente ou violentamente, a pressão, a força, de sua presença em cada uma de nossas situações. Implicitamente, em toda circunstância, perguntamos, “Como é que ele faria?”, e logo sabemos, porque, misteriosamente, ele está presente, já fazendo a coisa evangélica (do evangelho), e convidando-nos a fazer o mesmo. Nós nos enganamos quando dizemos, “Não há de saber como Jesus agiria”. Ele está à nossa frente, agindo, esperando que prestemos atenção e o sigam.
O Filho “faz o nosso coração” mostrando-nos na Bíblia e nos santos os “pensamentos do seu próprio coração”. Quando escutamos o coração de Jesus bater, assim como fazia João Evangelista na Última Ceia, descobrimos um mundo de interioridade infinitamente belo e até então desconhecido. Descobrimos uma imensa reverência (amor e obediência) pelo Deus santo e forte, que ele chama de Pai, com novos tons de filiação antes não ouvidos, nem mesmo nos salmos mais lindos e confiantes. Descobrimos uma compaixão incondicional e ativa para com tudo que vive e se move, e sobre tudo, para com tudo o que sofre. Descobrimos um compromisso absoluto com a verdade que faz com que ele a anuncie, custe o que custar. Descobrimos uma disposição ao mesmo tempo sorridente e decidida de carregar os fardos dos outros, mesmo se isto envolver incômodo, e o máximo incômodo, o de perder a sua própria vida.
Talvez seja aqui que Jesus exerce a máxima atração. Ao ver seu coração aberto, o nosso dói – dói porque o nosso é tão diferente, dói porque não podemos renunciar ao desejo de ter um coração igual. “Eis o homem!”- quer dizer, eis aquele que tem coração de homem.
O Filho “faz a nossa visão”. Gostaria de arriscar-me e partilhar um momento de lectio do mês passado, do Evangelho de São Mateus: “Naquele dia, Jesus saiu de casa e foi sentar-se às margens do mar da Galileia.” Era o primeiro versículo do evangelho do dia e não sentia necessidade de ir adiante. Sentei-me ao lado de Jesus e olhava com ele para o mar e o outro lado do mar. Como vocês sabem, às vezes na lectio, a gente cai por completo dentro de um texto. Não é mais um exercício de imaginação; é acontecimento, é realidade espiritual onde você realmente age e se transforma. Sentado lá ao lado de Jesus, experimentei um desejo tímido, embaraçado e forte (tudo junto) de colocar a minha mão na mão de Jesus e continuar olhando com ele. Foi isto que fiz , e o contato com a mão passou para os olhos: isto é, por um breve tempo, eu vi a existência, tudo o que vive e que respira, com os olhos de Jesus. Não posso descrever como foi; sou posso dizer que fiquei totalmente repleto e grato e maravilhado…e triste quando o sino de Laudes tocou. E certo de que ele gostaria de que sempre participássemos desta visão.
A nova criação (“Eis que faço novas todas as coisas”) – da nossa cabeça, nosso comportamento, nosso coração e nossa visão – é a consagração realizada pelo Filho. Mais uma vez coloco uma pergunta: “Será que já experimentamos, que estamos experimentando, esta consagração?” Filho e xará de São Bernardo, digo o que ele disse: Tudo, para ser real, precisa ser transcrito para o livro da nossa experiência.
Divinização: A Obra do Espírito
O que o Pai aceita e o Filho consagra, o Espírito diviniza.
Há dois tipos de divinização – um tipo falso e um tipo verdadeiro. O tipo falso é aquilo que eu chamaria de “divinização ontológica”, o desejo distorcido de querer ser o próprio Deus. Este é o sonho de Lúcifer que ele tentou, com sucesso, vender a Adão e Eva e, sem sucesso, para Jesus. De uma tal divinização podemos dizer, “Deus nos livre!”
Todos os teólogos clássicos afirmam que em Deus tudo é essência e não existem acidentes. Mas talvez, baseando-me em 1 Jo, possamos falar de essência da essência, aquilo que Deus é acima de tudo: Ele é amor. O ser humano, imagem de Deus, também possui um centro absoluto, mais frequentemente considerado como sendo um “lugar”, um “ponto”, o “ponto fino da alma”, le point vierge (os franceses acham que é intraduzível), a montanha da alma, o fundamento da alma.
Neste ponto de inocência criada e receptividade total, nosso “espírito”, Deus infunde o seu Espírito e nós nos tornamos uma nova criação (meu batismo). Todo o significado, precisamente, da vida “espiritual” é que este Espírito infuso una cada vez mais o nosso espírito ao seu e o una cada vez mais em si mesmo até que no centro de nós mesmos também nós sejamos amor (Merton/ centenário, “O amor é minha essência. O amor é o meu ser”).
O centro do nosso ser está destinado a se tornar amor em completa harmonia com o Espírito Santo. Máximo Confessor escreve que cada movimento de thymos (ira) em nós está destinado a ser transformado em agape. S. Bernardo diz que sob a influência do Espírito Santo, todos os nossos afetos – cada pulsar de nossa afetividade – é chamado a se tornar caridade.
Os Padres são realistas e idealistas ao mesmo tempo. Eles reconhecem a trabalheira que o Espírito Santo tem à sua frente. Bernardo diz que pelo pecado original, nosso amor (Eros) foi despedaçado como um espelho, em milhares de pedaços. É o lento, paciente e confiante trabalho do Espírito (que “tudo crê, tudo espera, tudo suporta”) que magnetiza todos estes cacos, cada pedacinho de cada um deles, para recompor o espelho até que nós nos tornemos um reflexo vivo do amor de Deus.
Conforme o tempo passa, a obra vai ficando mais fácil tanto para o Espírito quanto para nós. Conforme o Espírito fortalece e unifica o amor (voluntas) dentro de nós, nós colaboramos mais livremente, mais alegremente e mais efetivamente com sua obra, até que a mutualidade entre o Espírito e nós se torne algo muito próximo da mutualidade entre o Pai e o Filho.
Há algum limite para esta unidade de Espírito? Os Padres dizem “não”. Se é isto o que nós verdadeiramente desejamos em nossa liberdade, então a caridade divina continua e ativamente acolhida se tornará a nossa “lei”. “Quem adere ao Senhor se torna um só Espírito com ele” (unus not unum).
O espelho é recomposto. Mas isto não exclui “refração” – amor, paz, alegria. Todos os frutos do Espírito são, em última análise, manifestações de amor.
O que é que nos capacita a receber a infusão do Espírito? Segundo a tradição monástica, é a pureza de coração e a oração contemplativa. Todo o longo primeiro estágio da vida espiritual tem por objetivo a liberdade do domínio de qualquer outro “espírito” a fim de que o Espírito possa reinar sobre nós e em nós. A oração contemplativa (conhecimento experiencial amoroso de Deus) é um simples subir e esperar em nosso cenáculo interior até os dias para Pentecostes se completarem e o Espírito venha e abrase os nossos corações com o seu amor.
Novamente, penso que convém que pausemos e coloquemos a pergunta carismática: Eu recebi o Espírito? Uma vez mais, não tem como o coração não saber. A segunda resposta mais maravilhosa (depois da primeira: “Sim”) é “É tudo o que eu desejo”.
O Projeto de Deus em Nós e a Missão
Deus tem a intenção de transformar cada uma destas obras divinas pessoais em obras eclesiais para a edificação do Reino. Esta missão tem quatro níveis.
O nível mais fundamental é deixar que Deus realize estas obras em nós. O reino é “social” mas ele nos atinge pessoa por pessoa e Deus é glorificado por cada pessoa que se permite ser radicalmente “salva” desta forma.
O segundo nível é o de consentir em ser uma teofania. Deus não nos “acende” com a comunicação da sua vida para nos esconder sob um alqueire. Sem artificialidade mas igualmente sem demasiada modéstia, temos que deixar estes “trabalhos em progresso” ser perceptíveis no nosso comportamento, na nossa presença no mundo, na nossa conversatio.
O terceiro nível é o do “Vá e faça o mesmo”. Espera-se que nós “façamos a obra de Deus”, a obra da qual eu venho falando, para os outros – não substituindo a sua obra divina mas colaborando com ela.
Colaborando com a Obra do Pai
Se por um lado não podemos falar a palavra decisiva de aceitação acerca de um outro ser humano (“um grito de maravilhamento e alegria” de S. Inácio na Primeira Semana dos Exercícios quando o exercitante faz a experiência de ser aceito por Deus em Cristo), nós podemos dar expressão a esta aceitação, corroborá-la, humanizá-la. Paulo diz, “Aceitai-vos uns aos outros… para a glória de Deus” (Rm 15,7). Aceitos nós mesmos por Deus em nossa mistura de pecado e santidade, podemos aprender mais e mais aceitar outros integralmente, “abraçadamente” (de braços abertos e envolventes) em seu nível mais profundo. A nós também é dado dizer em nome do Pai: “Eu também não te condeno”.
Colaborando com a Obra do Filho
Tudo dentro de nós – a mente, o comportamento, o coração e a visão de Cristo – que ele nos comunicou e ainda comunica através de sua proximidade e seu poder de atração, nós, consagrados, podemos comunicar aos outros, estando próximos deles e atraindo-os a Cristo pela beleza de nossa vida, isto é, de sua vida acolhida e assimilada em nossa. São Paulo não hesita a dizer, “Sejam imitadores de mim, tal como eu sou de Cristo”, e Santa Edith Stein afirma, “Pessoas santas operam como sacramentos: santificam pelo simples contato.”
A forma mais plena e forte da nossa participação na obra da consagração dos outros pela vida de Cristo em nós chama-se paternidade/maternidade espiritual
Colaborando com a Obra do Espírito
Escritores modernos tão diversos como Von Balthasar e Merton falam do chamado de se tornar “um só Espírito” não apenas com Deus mas com outros seres humanos – da possibilidade de agir e amar neles e de permitir-lhes agir e amar em nós – a possibilidade de ir além dos limites de uma “individualidade” exagerada para se tornar aquele “único Cristo amando-se a si mesmo”, do que o santo de hoje fala no seu Comentário sobre a Primeira Carta de João. (Merton: “Nós já somos um. É só que nós não o sabemos”). Eles veem isto como algo a ser perfeitamente realizado no eschaton, mas como algo que deve estar ocorrendo agora e no qual nós participamos ativamente. O mesmo Agostinho, em seu comentário ao Sl 132 (Ecce quam bonum) diz que o Espírito do Cristo Ressuscitado é a “unidade” da comunidade monástica. É ele quem torna a comunidade “monos”. Todos os dias rezamos por isto na liturgia – “que nós nos tornemos um só corpo, um só Espírito em Cristo”, um só organismo vivo- e evidentemente aquilo que é proferido na oração durante a Eucaristia é uma tarefa fundamental em tudo aquilo que o dia após a Missa nos trará: viver por amor e liberdade no vida do outro e deixá-lo viver em mim.
O quarto nível é o da proclamação – proclamação verbal. Hoje se escuta frequentemente a frase de S. Francisco sobre a pregação silenciosa, pelo testemunho de vida. Mas, penso em um artigo de Rahner sobre a teologia fundamental onde ele cita Agostinho dizendo que, embora nossas palavras sobre Deus sejam absolutamente inadequadas e isto deva reduzir-nos ao silêncio, a grandeza dele é tal que nós nos sentiríamos envergonhados se não falássemos sobre ele, se não o proclamássemos e louvássemos. “Cremos e por isto falamos”. Não basta ter fé no coração para ser salvo; também há que ter a confissão nos lábios. Sermos salvos para quem? Para nós mesmos, certamente, mas igualmente para aqueles que estão aguardando, consciente ou inconscientemente, escutar a mensagem da salvação, o anúncio dos magnalia, dos milagres, que Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, opera em nós. +