Homilia | Dom Bernardo Bonowitz no Primeiro Domingo da Quaresma
“E ele ficou no deserto durante quarenta dias, e aí foi tentado por Satanás”
Homilia de Dom Bernardo Bonowitz, OCSO
A saber que tinha sido escalado para pregar a homilia para este primeiro domingo da Quaresma, que sempre tem como tema a tentação de Jesus no deserto,* eu imediatamente corri para o computador e abri na internet o site do dicionário de português para ver se existe em sua bela língua a palavra “insubornável”. Graças a Deus, existe. Porque esta insubornabilidade de Jesus (com este substantivo o computador não está de acordo) é o cerne daquilo que gostaria de partilhar com vocês ao entrarmos nestes quarenta dias em preparação para a celebração da paixão, morte e ressurreição de Jesus.
O demônio, que se imaginava dono do mundo, oferece tudo a Jesus: a satisfação de suas necessidades físicas (pão é só um exemplo), o poder e a posse ilimitados sobre todos os reinos do mundo, e a isenção do limite, perigo e mortalidade com a qual todo ser humano sonha. Se o demônio de fato era capaz de pagar suas promessas, quem sabe? Mas o pacote que apresentava era irresistível — quer dizer — ninguém dentre nós teria tido a força necessária para resistir.
Espero que entendamos que as mordomias que ele oferecia a Jesus não representam o aspecto principal desta cena. Nem, talvez surpreendentemente, o heroísmo de Jesus ocupa o lugar central. Jesus não figura como atleta de renúncia; esta não é a glória alcançada por Jesus no deserto. Acontece que a glória está no meio deste evangelho. Não a glória de Jesus, mas a glória de Deus, daquele que Jesus chama de Pai.
Jesus é insubornável, incapaz de ser corrompido por qualquer suborno, porque Ele, livre e totalmente, pertence a alguém, pertence a Deus. Não há preço – pequeno, médio ou grande – que pode “comprar” Jesus e fazer com que Ele negue esta pertença radical. Veremos no Getsêmani e no
calvário que a preservação da própria vida não basta para separá-lo de sua adesão a Deus, embora baste para separar d’Ele todos os seus discípulos.
Jesus é um homem piedoso (e, assim, é o resumo de toda a santidade do Antigo Testamento). Ele teme o Senhor, no sentido original do “temor de Deus”, Ele respeita o Senhor, Ele honra o Senhor, Ele obedece ao Senhor, Ele ama o Senhor. Se você percorrer os salmos, o livro de oração do povo de Israel, lá você encontrará todas estas expressões: temer, respeitar, honrar, obedecer, amar. Ele é um homem da Aliança: Ele aceitou com plena vontade o maior de todos os mandamentos: amar a Deus com todo o seu coração, toda a sua força, toda a sua mente, toda a sua vontade. Ele firmou um compromisso absoluto com Deus, um compromisso que não foi imposto, mas almejado por Ele. Na cena imediatamente anterior a este episódio da tentação, Jesus tinha sido batizado no Jordão, e lá o Deus de sua vida tinha se comprometido com Ele com a mesma solenidade e totalidade.
Para Jesus, há um só bem – é estar com Deus, é colocar toda a sua confiança no Senhor. Seu corpo e seu coração podem se gastar, mas Deus é o apoio e o fundamento de sua vida para sempre. Satanás tinha encontrado outras pessoas deste tipo nas suas atividades anteriores de tentador: Abraão, Moisés, Jó, Elias, e muitas mais. Mas o diabo não consegue acreditar que existam pessoas para as quais lealdade e entrega total a Deus signifique tudo. E só questão de encontrar a tentação certa.
Satanás é um cientista louco buscando a fórmula capaz de fazer toda a humanidade cair. Mas Jesus não cai. Não porque Ele é bom demais para cair. Ele é bom demais, mas esta não é a questão. Ele não cai porque ama demais para cair. O ponto deste evangelho não é a virtude filosófica da fidelidade. É a relação de fidelidade, e sobretudo, é Deus, que evoca do coração de Jesus esta fidelidade, esta devoção que nunca oscila. A fidelidade de Jesus ao seu Pai nunca funciona em meia-fase; a dedicação nunca se apaga.
Este é o grande ícone da Quaresma – Jesus, o ser humano que capta que a base de nossa humanidade é a nossa relação com Deus, que a base de nossa virtude é mostrarmo-nos fiéis a Ele, que a nossa capacidade de amar os outros de maneira estável, sem nunca os trair ou abandonar, depende completamente de nossa perseverança na amizade com Deus. O primeiro domingo da Quaresma proclama: “Eis o servo do Senhor”. Mesmo antes de morrer por nós, Jesus é a nossa redenção. Ele nos redime da má fama merecida de ser uma raça infiel, desleal, um povo que não sabe permanecer em comunhão com o Senhor seu Deus. Quão amável deve ser o Deus que suscita um amor tão incondicional da parte de Jesus.
A Quaresma nos põe à prova, a todos nós. Ela diz: “Amarás o Senhor teu Deus” como Jesus o ama. Pode ser que precisemos conhecê-lo melhor para assumir este tipo de compromisso, para imaginar assumir este tipo de compromisso, com uma radicalidade que se aproxima da de Jesus. Então, como diz o profeta Oseias: aprendamos, aprendamos a conhecer o Senhor nosso Deus (Os 6,3), para que cada um de nós (queira Deus!) possa um dia tomar o lugar de Jesus como o servo e testemunha fiel.
*. Cf. Mt 4,1-11; Lc 4,1-14; Mc 1,12-13.
Fonte: Sermões de um Trapista Brasileiro (Editora Biblioteca Católica, 2020) p. 53-56
Dom Bernardo Bonowitz é Abade Emérito do Mosteiro Trapista de Nossa Senhora de Novo Mundo. Atualmente transcorre seus merecidos dias de descanso sabático em uma das Abadias da Ordem.