Blog › 28/08/2018

Hagia Sophia

de Thomas Merton

Tradução: Sieni Campos

Confira as fotos página por página do poema em prosa de Thomas Merton na edição impressa à mão por Victor Hammer em 1962: Clique AQUI

 

Amanhecer.  A Hora de Laudes

Há em todas as coisas visíveis uma invisível fecundidade, uma luz suave, uma humildade inominada, uma totalidade oculta.  Esta misteriosa Unidade e Integridade é Sabedoria, a Mãe de tudo, Natura naturans.   Há em todas as coisas uma inesgotável doçura e pureza, um silêncio que é fonte de ação e alegria.  Ergue-se em delicadeza sem palavras e flui para fora de mim a partir das raízes despercebidas de todo ser criado, acolhendo-me com ternura, saudando-me com indescritível humildade.  É, a uma só vez, meu próprio ser, minha própria natureza e o Dom do Pensamento e da Arte do meu Criador em mim, falando como Hagia Sofia, falando como minha irmã, Sabedoria.

Experimento um novo despertar, um novo nascimento ao ouvir a voz desta minha Irmã que me é enviada das profundezas da divina fecundidade.

Suponhamos que eu seja um homem dormindo em um hospital.  De fato, sou esse homem adormecido.  Hoje é dia 2 de julho, Festa da Visitação de Nossa Senhora.  Uma Festa de Sabedoria.

Às cinco e meia da manhã, estou sonhando em um quarto muito tranquilo quando uma voz suave me desperta.  Sou, como toda a humanidade, acordado de todos os sonhos que já foram sonhados em todas as noites do mundo.  É como o Único Cristo despertando em todos os eus separados que já foram separados e isolados e sós em todos os recantos da terra.  É como todas as mentes reunindo-se ao tomar consciência de todas as distrações, contradições e confusões, tornando-se unidade de amor.  É como a primeira manhã do mundo (quando, ao ouvir a doce voz da Sabedoria, Adão despertou do não-ser e a conheceu), e como a Última Manhã do mundo, quando todos os fragmentos de Adão retornarão da morte ao ouvir a voz de Hagia Sofia, e tomarão consciência de si.

Assim é o despertar de um homem, uma manhã, ao ouvir a voz de uma enfermeira no hospital.   Ao despertar, sai do langor e da escuridão, do desamparo, do sono, enfrenta de modo novo a realidade e vê que é delicadeza.

É como ser acordado por Eva.  É como ser acordado pela Bem-aventurada Virgem.  É como sair do nada primordial e encontrar-se na clareza, no Paraíso.

No frescor da mão da enfermeira há o toque de toda vida, o toque do Espírito.

Assim a Sabedoria clama a todos que a ouvirem (Sapientia clamitat in plateis), e clama particularmente ao pequeno, ao ignorante e ao desamparado.

Quem é menor, mais pobre do que o homem desamparado que dorme em sua cama sem consciência e sem defesa?  Quem é mais confiante do que aquele que tem de confiar-se a cada noite ao sono?  Qual é a recompensa de sua confiança?  A suavidade vem até ele quando está mais desamparado e o desperta, repousado, começando a ser tornado inteiro.  O amor o toma pela mão e abre para ele as portas de outra vida, outro dia.

(Mas aquele que defendeu a si mesmo, lutou por si mesmo na doença, planejou para si mesmo, guardou-se a si mesmo, amou a si mesmo na solidão e passou a noite velando por sua própria vida é por fim morto pela exaustão.  Para ele nada há de novo.  Tudo é rançoso e velho.)

Quando o desamparado acorda forte ao ouvir a voz da misericórdia, é como se a Vida, sua Irmã, como se a Santa Virgem, (sua própria carne, sua própria irmã), como se a Natureza tornada sábia pela Arte e Encarnação de Deus estivessem de pé ao seu lado e o convidassem, com inexprimível doçura, a despertar e viver.  Isto é o que significa reconhecer Hagia Sofia.

De Manhã Cedo.  A Hora de Matinas

Ó bendito, silencioso, que falas em todos os lugares!

Não ouvimos a voz suave, delicada, misericordiosa e feminina.

Não ouvimos misericórdia, ou amor generoso, ou não-resistência, ou não-retaliação.  Nela não há razões e nem respostas.  Contudo, ela é o candor da luz de Deus, a expressão de Sua simplicidade.

Não ouvimos o perdão que não se queixa e inclina o rosto inocente das flores para a terra orvalhada.  Não vemos a Criança que está aprisionada em todas as pessoas, e que nada diz.  Ela sorri, pois, embora eles a tenham atado, ela não pode ser prisioneira.  Não que seja forte, ou inteligente, é que ela simplesmente não entende o aprisionamento.

O desamparado, entregue ao doce sono, a ele a suave despertará: Sofia.

Tudo que é doce em sua ternura falará a ele em todos os lados em tudo, sem cessar, e ele nunca mais será o mesmo.  Ele terá despertado não para a conquista e o prazer obscuro, mas para a impecável simplicidade pura de Uma consciência em tudo e através de tudo: uma Sabedoria, uma Criança, um Significado, uma Irmã.

As estrelas jubilam em seu declínio, e no ascenso do Sol.  As luzes celestes jubilam no avanço de um homem para fazer um novo mundo de manhã, porque ele saiu da confusa noite escura primordial para a consciência.  Ele expressou o claro silêncio de Sofia em seu próprio coração.  Ele se tornou eterno.

Meia Manhã.  A Hora da Terça

O Sol arde no céu como a Face de Deus, mas não conhecemos sua fisionomia como terrível.  Sua luz se difunde no ar e a luz de Deus é difundida por Hagia Sofia.

Não vemos O Ofuscante em negro vazio.  Ele nos fala suavemente em dez mil coisas, nas quais Sua luz é uma plenitude e uma Sabedoria.

Assim Ele brilha não nelas, mas de dentro delas.  Assim é a bondade amorosa da Sabedoria.

Todas as perfeições das coisas criadas também estão em Deus; e, portanto, Ele é, ao mesmo tempo, Pai e Mãe.  Como Pai, encontra-se em solitário poder rodeado de escuridão.  Como Mãe, seu brilho se difunde, abraça todas as Suas criaturas com misericordiosa ternura e luz.  O Brilho Difuso de Deus é Hagia Sofia.  Nós a chamamos de “glória” de Deus.  Em Sofia, o poder de Deus é vivenciado apenas como misericórdia e amor.

(Quando ouviam os Sinos de sua Igreja e olhavam, ao longe, as colinas e pântanos sob um céu favorável, os reclusos da Inglaterra do século XIV falavam em seus corações a “Jesus, nossa Mãe”.  Era Sofia que tinha despertado em seus corações como que de criança.)

Talvez, em certo aspecto muito primitivo, Sofia seja o desconhecido, o escuro, o inominado Ousia.  Talvez ela seja até a Divina Natureza, Una no Pai, Filho e Espírito Santo.  E talvez ela esteja em infinita luz não manifesta, nem sequer esperando para ser conhecida como Luz.  Isto eu não sei.  Do silêncio, Luz é falada.  Só a ouvimos ou vemos quando é falada.

No Inominado Começo, sem Começo, era a Luz.  Não vimos esse Começo.  Não sei onde ela está nesse Começo.  Não falo dela como um Começo, mas como uma manifestação.

Agora a Sabedoria de Deus, Sofia, avança, abrangendo de “ponta a ponta poderosamente”.  Por sua vontade, ela é também o pivô despercebido de toda a natureza, o centro e o significado de toda a luz que está em tudo e para tudo.  O que há de mais pobre e mais humilde, mais oculto em todas as coisas, é, no entanto, o mais óbvio nelas, e bem manifesto, pois é o seu próprio eu que está diante de nós, nu e sossegado.

Sofia, a criança feminina, está brincando no mundo, óbvia e despercebida, brincando o tempo todo diante do Criador.  Seu deleite é estar com as crianças humanas.  Ela é sua irmã.  O cerne da vida que existe em todas as coisas é ternura, misericórdia, virgindade, a Luz, a Vida considerada como passiva, como recebida, como dada, como tomada, como inesgotavelmente renovada pelo Dom de Deus.  Sofia é Dom, é Espírito, Donum Dei.  Ela é dom de Deus e o próprio Deus como Dom.  Deus como tudo, e Deus reduzido a Nada: inesgotável nulidade.  Exinanivit semetipsum.  Humildade como fonte de luz inexaurível.

Hagia Sofia é, em todas as coisas, a Vida Divina refletida nelas, considerada como uma participação espontânea, como seu convite para a Festa de Casamento.

Sofia é a partilha que Deus faz de Si mesmo com as criaturas.  É o seu jorrar, e é o Amor pelo qual Ele é dado, e conhecido, guardado e amado.

Ela é em todas as coisas como o ar recebendo a luz do sol.  Nela, prosperam.  Nela, glorificam a Deus.  Nela, jubilam em refleti-Lo.  Nela, estão unidas a Ele.  Ela é a união entre as coisas.  Ela é o Amor que as une.  Ela é vida como comunhão, vida como ação de graças, vida como louvor, vida como festa, vida como glória.

Porque ela recebe perfeitamente, nela não há mancha.  Ela é amor sem mácula, e gratidão sem autocomplacência.  Todas as coisas a louvam sendo elas mesmas e participando da Festa de Casamento.  Ela é a Noiva e a Festa e o Casamento.

O princípio feminino no mundo é a inesgotável fonte de realizações criativas da glória do Pai.  Ela é a manifestação do Pai em radiante esplendor!  Mas ela permanece despercebida, vislumbrada por uns poucos.  Às vezes não há ninguém que a conheça.

Sofia é a misericórdia de Deus em nós.  Ela é a ternura com a qual o infinitamente misterioso poder do perdão transforma as trevas de nossos pecados na luz da graça.  Ela é a fonte inesgotável de bondade, e quase pareceria ser, em si mesma, toda misericórdia.  Assim, ela faz em nós uma obra maior do que a da Criação: a do novo ser na graça, a do perdão, a da transformação de claridade em claridade tamquam a Domini Spiritu.  Ela é em nós a contraparte generosa e terna do poder, da justiça e do dinamismo criativo do Pai.

Ocaso.  A Hora das Completas.  Salve Regina

Agora a Bem-aventurada Virgem Maria é o único ser criado que traduz e apresenta em sua vida tudo o que está oculto em Sofia.  Por isto, pode-se dizer que é uma manifestação pessoal de Sofia, Quem em Deus é Ousia, e não Pessoa.

Natura em Maria torna-se pura Mãe.  Nela, Natura é como ela já era desde a origem de seu nascimento divino.  Em Maria, Natura é toda sábia e é manifestada como pessoa toda prudente, toda amorosa, toda pura: não um Criador, e não um Redentor, mas perfeita Criatura, perfeitamente Redimida, o fruto de todo o grande poder de Deus, a perfeita expressão de sabedoria em misericórdia.

É ela, é Maria, Sofia, que, na tristeza e na alegria, com plena consciência do que está fazendo, coloca na Segunda Pessoa, no Logos, a coroa que é Sua Natureza Humana.   Assim, seu consentimento abre a porta da natureza criada, do tempo, da história, para o Verbo de Deus.

Deus entra em Sua criação.  Através de sua resposta sábia, de seu entendimento obediente, do generoso e doce consentimento de Sofia, Deus entra sem alarde na cidade de homens predatórios.

Ela O coroa não com o que é glorioso, mas com o que é maior do que a glória: a única coisa maior do que a glória é a fraqueza, a nulidade, a pobreza.

Ela envia o infinitamente Rico e Poderoso como pobre e desamparado, em Sua missão de inexprimível misericórdia, para morrer por nós na Cruz.

As sombras se dissipam.   As estrelas aparecem.  As aves começam a adormecer.  A noite abraça a metade silenciosa da Terra.

Um indigente perambula, com pés empoeirados, e chega a uma nova estrada.  Um Deus sem teto, perdido na noite, sem documentos, sem identificação, sem sequer um número, um frágil exilado descartável deita, em desolação, sob as doces estrelas do mundo e Se confia ao sono.

Deixe o seu comentário





* campos obrigatórios.