Acreditar não é ter resolvido tudo, acreditar é sentir-se em
estado de pergunta, é sentir-se em nascimento, sentir-se no
interior de um parto incessante, de uma sucessão de começos.
Isso é a história da nossa fé.
(Cardeal Tolentino Mendonça)
Existem homens e mulheres de Igreja que caminharam no limite da ortodoxia, ou mesmo deram algumas escorregadas, mantendo um tenso diálogo com a instituição, por conta de uma vocação muito específica e por não abrirem mão de serem autênticos no cumprimento de seus deveres como poetas, teólogos, filósofos, místicos e pregadores. São aqueles chamados “ortodoxos subversivos” que têm um papel por vezes incompreensível para aqueles que mantiveram-se sempre em casa — como o filho mais velho da parábola do filho do pródigo — mas cujas trajetórias (e escritos) continuam inspirando milhares de pessoas ao redor do mundo. Esses subversivos talvez sejam um pouco herdeiros do filho mais novo. Trazem sua experiência de “errância” de volta à casa do pai.
Um desses é Mestre Eckhart, que é até hoje é acusado de heresia e sobre o qual pesa a desconfiança de “teólogo não-ortodoxo” (não vamos entrar aqui nesse mérito) mas cuja obra — no momento leio o maravilhoso “Tratados e Sermões” (Ed.Paulinas) — é alento e inspiração para aqueles que desejam navegar nos mares interiores da contemplação. É um autor sempre considerado “perigoso”, mas que te obriga a pensar, a exercitar a imaginação, a sair dos terrenos seguros das certezas demasiadas, e o melhor: te conduz à oração. É quase impossível terminar de ler um trecho de um tratado e não querer rezar, desafiado e convidado por uma mente que se aproximou de forma tão peculiar do Senhor.
O Papa Francisco é especialista em aproximar-se desses cristãos das margens. Quando esteve nos EUA e discursou no Congresso, citou três personagens que podem ser considerados controversos: Martin Luther King (pastor batista), com sua luta pelos direitos civis e contra a segregação racial; Dorothy Day, fundadora do movimento dos Trabalhadores Católicos, mãe solteira e convertida, comprometida e apaixonada pela causa social e pela justiça, companheira dos oprimidos (no Brasil, seria hoje chamada de “comunista”) e nosso conhecido Thomas Merton, esse monge que mostrou ao mundo que a vida contemplativa, ao contrário do que se pensa, não aliena, mas coloca-nos no Coração da Realidade. No claustro ou no eremitério, esse monge errático (que também escorregou nos braços de “M.”) jamais deixou de se engajar e militar, sempre partindo do espiritual: foi um mestre do diálogo e da abertura da alma a Deus.
Também o Papa Francisco fez questão de acolher dois teólogos que fizeram história na Teologia da Libertação e cujas obras foram (são) objetos de grande controvérsia: Gustavo Gutiérrez e Ernesto Cardenal. Gutiérrez, chamado “Pai da Teologia da Libertação”, foi notificado pela Congregação para a Doutrina da Fé (cujo prefeito era Ratzinger) em 1982, mas manteve-se disposto a dialogar com a Igreja, tendo sido, depois de décadas, chamado de novo para “perto” da hierarquia pelo Papa Francisco, através do na época Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Gehrard Müller (estudioso profundo da TdL e organizador da “Opera Omnia” de Ratzinger/Bento XVI). Gutiérrez aproximou-se de novo da Igreja, palestrou em um congresso no Vaticano e celebrou com o Papa. Vejamos: a mesma Congregação que notificou, trouxe Gutiérrez de volta: a Igreja soube ser mestra, mas também sabe ser mãe. Sobre o reencontro com Gutiérrez, o Papa Francisco se expressou:
“Se alguém tivesse dito na época que um dia o prefeito da Congregação para a Doutrina da fé traria Gutiérrez para concelebrar uma missa com o Papa, diriam que estava bêbado.”
Essa atitude acolhedora do Papa Francisco aos “homens das margens” é muito comovente. Relembramos também Ernesto Cardenal, que todo mundo conhece pela famosa foto em que está levando uma bronca de São João Paulo II pelo seu envolvimento com o governo revolucionário nicaraguense. Logo depois, Cardenal seria “suspenso de ordem” (proibido de exercer o ministério sacerdotal) e seguiria uma trajetória como homem público, tendo rompido com a Frente Sandinista Nacional de Libertação (FSLN) em 1994. O Papa Francisco retirou todas as sanções canônicas aplicadas a Ernesto Cardenal em fevereiro de 2019, reintegrando-o plenamente à Igreja Católica. Cardenal já estava muito doente e pôde celebrar novamente a eucaristia depois de 35 anos. Manteve um diálogo fecundo com a Igreja nicaraguense, na figura do núncio Dom Sommertag, e morreu em paz com o Senhor e sua Igreja em 2 de março de 2020, aos 95 anos. Esse gesto de Francisco testemunha uma Igreja compreensiva para com todos os homens que demonstram abertura de alma, desejam o diálogo, e admitem uma possibilidade de reconciliação. É muito bonita essa atitude de não esperar que venham, mas ir atrás dos desgarrados. Também Francisco tem a humildade de reconhecer que a Igreja, em seu diálogo com as culturas e tradições, recebe muito ao aproximar-se desses homens, com suas trajetórias e obras. No diálogo, todos ganham. E algumas reconciliações e retornos acontecem. E mesmo com aqueles que optam por permanecer às margens, podemos dialogar e aprender.
É importante fazer memória de que Ernesto Cardenal foi noviço de Thomas Merton na Abadia de Gethsemani (mas não prosseguiu na Trapa). Obviamente, a influência de Merton prosseguiu durante toda a sua vida.
Uma observação: não há aqui qualquer crítica ao Pontificado de São João Paulo II e do então cardeal Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que, pelas circunstâncias, foram obrigados a notificar e a corrigir alguns teólogos. Penso que foi, inclusive, esse notável trabalho o que construiu o terreno para que Francisco pudesse realizar o importante trabalho pastoral atual. Para cada época o Espírito Santo escolhe o Papa certo. É preciso que tenhamos fé no Espírito Santo. Ratzinger, apesar da antipatia gerada pelo diálogo tenso com alguns teólogos nos anos 80, sempre dialogou largamente com os modernos, com os ateus (Paolo Flores d’Arcais, Marcelo Pêra, Habermas), declarou Eckhart ortodoxo (quando interpelado pelo superior dos dominicanos, Timothy Radcliffe), citou positivamente Teilhard de Chardin, declarou Hildegarda de Bingen Doutora da Igreja, e, numa belíssima catequese, louvou a mística de Juliana de Norwich; e mais: periga que seus escritos sociais reunidos sejam considerados mais “à esquerda” (para usar uma terminologia que me parece tão alheia ao pensamento de Ratzinger quanto ao de Bergolio) do que os de Francisco.
Para encerrar, voltamos ao atual Pontífice. Essa atitude dialogal e acolhedora de Francisco, que optou por mostrar ao mundo o rosto misericordioso de Cristo e a face materna da Igreja, é revolucionária, e está atingindo a muitos corações. Há muitas pessoas fora do redil porque não encontram uma linguagem que lhes toque a alma. E aqui que entra o povo das margens, tão caro a Francisco. É o Espírito Santo quem sopra nos ouvidos e nos corações e escolhe homens que podem parecer, à primeira vista e aos olhos de muitos, suspeitos para portar uma mensagem tão inspiradora. Mas vento sopra onde quer: é indomesticável.
Graças a Deus, temos um Francisco, um Henri Nouwen, um Maritain, um Congar ou um Kerouac…
Termino com as palavras do cardeal Tolentino Mendonça sobre esse novo jeito pastoral (e tão pessoal) do papa Francisco:
“As pessoas estão hoje disponíveis para dar uma segunda oportunidade ao discurso religioso e à Igreja (…). São pessoas que nasceram num ambiente católico e que se distanciaram por uma crise no processo de transmissão, por um qualquer acidente biográfico de percurso, por uma crise de pertença em relação à Igreja. Mas hoje, perante o discurso do papa Francisco, apresentam-se sensibilizadas e disponíveis para o ouvir e para buscar a Igreja.
[…]
a quantidade de pessoas que estão tocadas pelo exemplo do papa Francisco e que no contar da sua biografia, da sua itinerância, referem o Papa Francisco e o seu discurso como uma palavra de hospitalidade que permitiu o clique, o momento do repensamento e da transformação, ou que fez acordar de novo o desejo de uma revelação espiritual.
[…]
O acolhimento da Igreja não é ideológico, não parte de uma ideia. Parte das vidas concretas das pessoas, mostrando-se disponível para fazer o caminho com cada uma, o caminho necessário. E, como diz o Evangelho, ‘se alguém te pede para caminhar uma milha, caminha duas’. É essa disponibilidade para um caminho longo que, no desafio do Papa Francisco, a Igreja tem que ter.”