Blog › 15/02/2017

“(…) mesmo com oito anos de estudos, sei que ainda tenho muito que aprender sobre Merton.”

Entrevista de Norma Nasser* a Sérgio de Souza

 

Interior do Eremitério de Thomas Merton, Mosteiro Trapista de N. S. do Gethsemani (Kentucky/USA)

Norma, como foi o seu primeiro “encontro”, com Thomas Merton. Como descobriu sua obra?

Minha formação acadêmica foi realizada através do curso de Psicologia e de Comunicação Social (Jornalismo). Exerço minha profissão em consultório de psicologia clínica. Estava fazendo uma especialização em psicanálise, quando conheci Ana Maria Zinsly, uma doutoranda na área de Ciência da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora. Ficamos muito amigas, e foi ela quem me despertou o interesse pelo estudo da religião como ciência. Entrei no curso de especialização na UFJF e foi lá que tudo começou.
Nunca antes havia ouvido falar em Thomas Merton. Fiquei encantada pelo curso e resolvi tentar o mestrado, pensei em diversos temas, mas quando conheci Merton, através das aulas do teólogo Faustino Luiz Couto Teixeira tive a certeza do que queria. Sou católica e como Merton tenho atração pelo Oriente, fui professora de Yoga durante vinte anos. Daí resultou meu mestrado “O outro lado da montanha: Thomas Merton – uma perspectiva dialogal”. Logo depois, o doutorado, “Thomas Merton e o Zen Budismo”. A sua obra é tão rica e fascinante, que mesmo com oito anos de estudos, sei que ainda tenho muito que aprender sobre Merton.

 

Recebo algumas reclamações de católicos tradicionalistas que Merton seria um sincretista que, perto do fim da vida, estava quase fora da Igreja Católica, participando dos cultos de outras religiões e que, neste sentido, teria sido um arauto não do Concílio, mas dos movimentos “new age”. Citam o “affair” de Merton com uma enfermeira, registrado nos seus diários, para atacá-lo e nomeá-lo de “traidor” e “herege”. No entanto, ele mesmo escreve que superou totalmente o “affair” e nunca quis sair da Igreja. (Para a surpresa de um desses tradicionalistas, disse-lhe que Merton nunca aceitou a liturgia em vernáculo e celebrou em latim, no rito “antigo” até a sua morte). Outros ainda, querem sequestrar a figura de Merton como “precursor” da Teologia da Libertação. O que pensa disso?

Merton sempre se posicionou contra o sincretismo religioso, ele defendia com todas as letras a importância da integridade de cada tradição religiosa. O diálogo inter-religioso, segundo ele, pressupõe falar de “algum lugar”, sem estar domiciliado em uma tradição, o diálogo se tornaria impossível. Merton foi um buscador do diálogo, ele queria compartilhar e aprender com outras tradições, mas seu coração e alma estavam indissoluvelmente ligados à tradição cristã. Disse em seu diário em 26 de junho de 1965: “Eu posso estar interessado em religiões orientais, mas não pode haver nada obscurecendo a diferença essencial, essa comunhão pessoal com Cristo no coração e centro de toda realidade, como fonte de graça e vida..” (Dancing in the Water of Life, p. 259).
Quanto ao seu “affair” com a enfermeira M., que aconteceu dois anos antes de sua morte, em 1966, eu pesquisei em profundidade nos seus diários. Este é um tema que faz parte de um tópico do meu doutorado. Merton era um homem, com pecados e virtudes, neste período estava doente e fragilizado, essa mulher cuidou dele com amor. Porém, ele terminou este relacionamento quando percebeu que o seu verdadeiro caminho era na Igreja como monge trapista. De fato, este amor só fez confirmar a sua escolha de dedicação total ao Cristianismo.
Na reflexão sobre a relação de Merton com a “Teologia da Libertação”, não vi nada em sua obra que pudesse considerá-lo como “precursor” desta, apesar de alguns estudiosos afirmarem isso. Em sua última palestra, “Marxismo e perspectivas monásticas”, Merton coloca claramente a distância entre o catolicismo e qualquer tipo de ideologia. Segundo ele, “A diferença entre o monge e o marxista é fundamental no ponto em que o marxista reivindica uma mudança de subestruturas econômicas, ao passo que o monge procura mudar a consciência do homem” (O Diário da Ásia, p. 259). Merton também criticou o materialismo marxista. Não conheço com profundidade essa teologia, mas pelo pouco que sei ela se desvirtuou para um campo ideológico bem próximo de uma esquerda comunista marxista, utilizando a Igreja para a implantação e difusão de seus ideais políticos.

 

Merton se interessava por praticamente tudo – religiões, monasticismo, filosofia, teologia, arte, poesia, literatura, políticas, direitos civis, música. Ele mantinha correspondência com um sem-número de intelectuais, artistas, escritores e religiosos. Foi um homem universal. Não é paradoxal que um monge trapista, um homem consagrado ao silêncio, à solidão e a oração, estivesse conectado ao mesmo tempo com tantas pessoas e tantos interesses? Merton tinha uma vocação monástica específica? Como seus superiores interpretavam isso?

Sim, Merton vivia no seio de um paradoxo, talvez por isso mesmo ele tivesse tanta empatia com os mestres do Zen Budismo e suas atitudes paradoxais. Como no Zen, Merton sabia que ser contemplativo e praticar a meditação não era um fim em si, mas sim, tornar-se melhor e mais consciente para participar e agir no mundo. Ele sempre combateu o quietismo, o homem para ele era um ser da história, e como tal deveria participar dela. Amava sim a solidão, mas amava também as pessoas e para ele Deus se revelava também no mundo imanente, na humanidade, nos animais, enfim, em toda a natureza.
Os seus superiores ficavam bastante preocupados com isso, inclusive com o fato da sua grande produção intelectual e principalmente com seu ativismo político. Alguns de seus escritos chegaram a ser censurados, a sua viagem à Ásia também foi conseguida após muitas conversas com seu Abade. Merton tinha de fato uma vocação monástica especial, ele foi um eremita peregrino.

 

Nas décadas de 50 e 60, “A Montanha dos Sete Patamares” virou um Best-seller que provocou uma avalanche de vocações sacerdotais ao redor do mundo e segundo especialistas, é um dos livros que mais influenciou a juventude americana no século XX, ao lado de “O apanhador no campo de centeio”, de J.D. Salinger e “On the Road – pé na estrada”, de Jack Kerouac. A senhora acha que “A Montanha dos Sete Patamares” ainda é um livro atual? Tem algo a dizer aos jovens do nosso tempo?

Certamente, “A Montanha dos Sete Patamares” é um livro que nunca vai deixar de ser atual. Nascido na Primeira Guerra Mundial, Merton passou também pela Segunda Grande Guerra. Ele tem muito a nos ensinar, com escrita rica e poética, esta obra é o registro de uma época feito por um jovem em busca de paz e solidão num mundo conturbado pela guerra. Estamos vivendo hoje, também um período difícil, onde os valores cristãos estão sendo, por muitos, jogados por terra. Tenho visto cristãos sendo perseguidos e até mortos, o diálogo inter-religioso como ele acreditava e buscava, está cada dia mais difícil. Sua influência para os jovens de hoje seria altamente benéfica. Foi um místico que pregou o amor, foi contra a guerra, contra todos os tipos de injustiça, buscou a solidão como maneira de estar mais próximo de Deus e devolver esse amor para a humanidade. Foi um mestre da contemplação indissoluvelmente ligada à ação, segundo ele: “O amor não está apenas na mente e no coração, é mais do que pensamento e desejo. O amor é ação.” (Prefácio de Merton no livro de Ernesto Cardenal “Vida no Amor”, p. 13).

 

Quais obras a senhora sugeriria como uma introdução ao pensamento de Merton?

Primeiramente leiam sua autobiografia, “A Montanha dos Sete Patamares”. Outra leitura importante é “Merton na Intimidade: Sua Vida em Seus Diários” (Ed Fisus), que faz uma excelente coletânea dos melhores momentos de seus VII diários, que infelizmente não estão traduzidos para o português. Somente parte do último, “O Diário da Ásia” (Ed. Veja) e também “Reflexões de um Espectador Culpado” (Ed. Vozes). Outro livro que eu gosto muito é “Amor e Vida” (Ed. Martins Fontes).
Para quem se interessa pela relação de Merton com o Zen Budismo, eu sugiro “Zen e as Aves de Rapina” (Ed. Cultrix) e Místicos e Mestres Zen (Ed. Civilização Brasileira), livros que trabalhei muito em meu doutorado.

 

O Papa Francisco assim apresentou Thomas Merton em sua viagem aos Estados Unidos:

“Um século atrás, no início da I Grande Guerra que o Papa Bento XV definiu «massacre inútil», nascia outro americano extraordinário: o monge cisterciense Thomas Merton. Ele continua a ser uma fonte de inspiração espiritual e um guia para muitas pessoas. Na sua autobiografia, deixou escrito: «Vim ao mundo livre por natureza, imagem de Deus; mas eu era prisioneiro da minha própria violência e do meu egoísmo, à imagem do mundo onde nascera. Aquele mundo era o retrato do Inferno, cheio de homens como eu, que amam a Deus e, contudo, odeiam-No; nascidos para O amar, mas vivem no medo de desejos desesperados e contraditórios». Merton era, acima de tudo, homem de oração, um pensador que desafiou as certezas do seu tempo e abriu novos horizontes para as almas e para a Igreja. Foi também homem de diálogo, um promotor de paz entre povos e religiões.”

[…] a senhora poderia fazer um comentário sobre essa declaração do Santo Padre?

Místico e santo do século XX, Merton foi e continuará sendo um guia espiritual, uma luz na escuridão, o seu pensamento é atemporal, seu espírito eterno. Em qualquer época que se leia Merton, você verá a Verdade. Foi, sim, um homem de oração, mas além disso um monge contemplativo, que amava o silêncio, a natureza, a humanidade. Foi um buscador do diálogo, sem, no entanto, desvirtuar a sua própria fé cristã. Acreditava no respeito entre as religiões, cristãs e não cristãs. Afirmou que a proximidade com outras tradições fortalecia a própria fé. Concordo com as palavras do Papa Francisco, principalmente no que dizem respeito ao fato de Merton ser “um promotor de paz entre povos e religiões”. Este foi um de seus feitos mais importantes, que talvez somente a liberdade espiritual dos santos e místicos possibilita compreender e exercer na sua plenitude.

 

 

Norma Ribeiro Nasser Salomão, nasceu em 03 de janeiro de 1956, é psicóloga clínica, jornalista, especialista, mestre e doutora em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Fez sua dissertação de mestrado sobre o diálogo inter-religioso: “‘O outro lado da montanha’: Thomas Merton – uma perspectiva dialogal. ” (Término em 2008). Defendeu sua tese de doutorado com a pesquisa sobre “Thomas Merton e o Zen Budismo” (término em 2014). Seu orientador foi o teólogo Dr. Faustino Luiz Couto Teixeira.

 

 

 

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