Blog › 25/09/2017

Em busca de uma luz, IV

Dom Bernardo Bonowitz, OCSO

1. Chegamos ao quarto grau da humildade que fala de uma experiência negativa da obediência. A obediência já foi identificada por Bento no grau anterior como “amor em ação”; portanto, não podemos simplesmente conformar-nos com a ideia de obediência como um aspecto penoso ou penitencial da vida monástica. Longe de nós fazer com a obediência o que muitos sacerdotes no mundo fazem com o celibato: considerá-lo como o “preço” da vocação. Não, é exatamente este tipo de atitude que São Bento quer superar. Como deixar o “bem da obediência” como ele o chama ainda se faz sentir, mesmo em condições desafiadoras?

2. Primeiro, é bom dizer explicitamente que estas dificuldades no caminho da obediência podem ter uma base fundamental objetiva ou subjetiva. A base é subjetiva quando a ordem do superior e a maneira de comunicá-la é perfeitamente lícita, mas nós por causa de alguma imaturidade pessoal ou deformação de caráter sentimo-nos injustiçados ou ofendidos por esta ordem. Não se trata de egoísmo consciente, mas de
uma leitura errada da realidade que surge por causa de uma imperfeição em nossa personalidade. Nós realmente nos consideramos ofendidos, mas se pudéssemos ver a situação na luz da verdade divina, descobriríamos que a dor procede de um deficiente realismo psicológico da nossa parte. Quanto mais levo a vida monástica, mais convicto me torno que as paixões mais difíceis e resistente são aquelas que tem origem em nosso intelecto – a vaidade e o orgulho.

3. Agora, porém, suponhamos que o problema é objetivo – que nós estamos enfrentando coisas duras e adversas, ou que até estamos sendo o objeto de injúrias. Qual é a alquimia que São Bento recomendar para transmutar este chumbo em ouro?

4. Pessoalmente, eu vejo cinco vantagens que provêm da experiência do sofrimento no exercício da obediência. Aqui estão: A primeira é que o sofrimento cria determinação. Encontrando-nos diante do sofrimento em nosso empenho há apenas duas possibilidades: ceder ou continuar – desistir ou insistir. A mim parece que a experiência de sofrimento no cumprimento de nossos deveres é comparável a um jogo de "arm-wrestling" (ou "finger wrestling"). Deus é o nosso concorrente e aparentemente quer forçar o nosso braço a ceder, empregando a sua força contra nós. Se a gente se lembra da história de Jacó e o anjo, porém, percebe-se que a vontade de Deus é que a gente ganhe. Mas ganhe mesmo. Deus não vai simplesmente nos entregar um certificado de vencedor. Opondo-se a nós, ele nos estimula de aplicar toda a nossa energia na luta – mais energia, de fato, do que pensávamos ter. O sofrimento consegue disponibilizar as nossas reservas – os nossos desejos profundos, e talvez consegue aumentá-las. Paradoxalmente, é o sofrimento que faz com que abracemos o nosso propósito de coração mais íntegro. Quem foi quem disse, “A tribulação produz a perseverança” (Rom. 5:3). Mais uma vez, São Paulo tinha razão.

5. A segunda vantagem é que o encontro com dificuldades na vida de obediência muda as nossas motivações. Com a possível exceção de pessoas muito hostis, todos nós desejamos agradar aos outros. Queremos uma convivência agradável, e sem atrito; e queremos saber que a nossa contribuição à comunidade é reconhecida e respeitada. Tais motivações são normais e positivas, mas não são as supremas. As motivações mais profundas na vida da obediência são: a) amar a Deus b) servir aos irmãos c) viver com integridade. Certamente a nossa vida da obediência monástica já participa destas motivações mais altas, desde o início. Mas são muito misturadas com as do primeiro grupo – o desejo de agradar aos homens, e também de fazer sucesso. Quando encontramos oposição ou quando fracassamos, os dois grupos de motivações se separam temporariamente – por enquanto são irreconciliáveis. Esta representa uma grande oportunidade para nós, para livremente escolher a Perseverança no bem por amor a Cristo e a Igreja. As circunstâncias adversas permitem uma adesão mais pura aos dois grandes mandamentos, que são subjacentes a todos os instrumentos de boas obras.

6. A terceira vantagem é a descoberta da beleza da virtude. O que nós chamamos as virtudes cardeais – justiça, prudência, temperança, fortaleza – não são imposições morais, mas nós mesmos em nosso bom andamento. Viver justamente, prudentemente etc. significa viver em sintonia com nossa estrutura humana. E, segundo toda a nossa tradição católica, viver conforme a nossa estrutura, é viver feliz. O belo, o bom e o beato são estreitissimamente ligados. Viver privado por um tempo da aprovação de meus superiores ou do apoio de meus irmãos deixa a virtude manifestar tal como ela é. Não podemos contemplar a beleza da temperança ou paciência ou qualquer outra virtude de fora, mas só por experiência própria. E são as situações difíceis que revelam mais claramente as virtudes desnudadas de todos os enfeites (popularidade, aplausos, etc). Neste caso, o estado natural é, sem dúvida, o estado de beleza maior.

7. A quarta vantagem é a formação de uma nova liberdade de amar. Na chave cristã, o amor fraterno não é o amor que uma pessoa santa rende à outra. O Evangelho fala tão claramente sobre isto no Sermão da Montanha onde tal amor é qualificado como "amor pagão" (amor dos goiim).
O amor fraterno tanto no Sermão da Montanha quanto na primeira Carta aos Coríntios e em mil outros lugares no Novo Testamento, é o amor para aqueles que nos ofendem, que nos negligenciam, que exigem de nós muito mais do que dão. Podemos pensar que já amamos deste jeito, mas só as experiências descritas no quarto grau vão revelar a verdadeira natureza de nosso amor. É por meio de tais experiências que aprendemos a amar aquele que São Bento denomina (citando São Paulo) o “falso irmão”. Por meio das coisas duras e adversas que ele nos oferece, chegamos a descobrir que o falso irmão ainda é irmão e que há uma possibilidade de amá-lo – não tanto em nossas emoções (que afinal das contas não são tão importantes assim), mas em nossas ações – oferecendo a outra face, acompanhando-o a segunda milha, etc. Eu adoro um versículo de São Paulo em Romanos 12 que infelizmente quase sempre se omite das leituras litúrgicas: “Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer, se tiver sede, dá-lhe de beber. Agindo desta forma, estarás acumulando brasas sobre a cabeça dele” (12:20). Então, se quisermos pensar em brasas ardentes fazendo o bem ao irmãos difícil, temos toda a liberdade. É só amá-lo em ação.

8. A quinta e última vantagem é para São Bento a mais importante. É a formação da esperança teológica. O que permite que aceitemos o desagradável de mente tranquila é o lançar de nossa âncora de esperança além do véu. O nosso Senhor vê tudo, anota tudo. Ele bem sabe que estamos esforçando-nos a amá-lo, e exprimir este amor por meio de todas as nossas ações. Ele não vai deixar-nos ficar sem nosso prêmio, sem os tesouros que ele reserva para todos que o amam. Os grandes cânticos que recitamos, “Dificuldades não temos em sustentar tudo isso”, se tem alguma ligação com a realidade, esta ligação consiste em nossa esperança inabalável. É um dos temais mais centrais do saltério: Do alto céu o Senhor olha a terra, e vê os justos e os injustos. Mas não olha intocado – olha com muitíssimo interesse, com um desejo forte de doar aos justos o salário. Quando o patrão em Mateus 25 diz, “Muito bom, servo bom e fiel. Vem alegrar-te com teu Senhor”, em que consiste esta alegria, senão na oportunidade que isto dá a Deus para premiar-nos. Afinal das contas, para Ele também há mais alegria em dar do que em receber.

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