Blog › 19/09/2017
Em busca de uma luz, III
Dom Bernardo Bonowitz, OCSO
1. O primeiro grau da humildade nos apresentou com uma visão da realidade – que Deus é, e que a sua existência é o fato mais marcante, sumamente marcante, da nossa. No segundo grau, esta visão transbordou numa nova vontade, num desejo de abrir a nossa vontade ao fluxo da Vontade Divina, e fazer de nossa vida interior um constante abraçar-se do beneplacitum divino.
2. No terceiro grau, um dos mais breves textualmente, este amor pela Vontade Divina que começou a apoderar-se do ser humano, busca sua expressão apropriada – e a encontra na esfera de ação. Faz trinta e cinco anos*, estou apaixonado por uma frase lacônica dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio: “É próprio do amor manifestar-se mais por obras do que por palavras”. Vejamos como não se trata aqui do dever mas do desejo: O amor busca uma maneira de manifestar-se, ou melhor ainda, de encarnar-se. Para nós seres humanos, o amor se torna real, e satisfaz o coração daquele que ama, quando ele se “atualiza”.
3. A doutrina de Bento é claríssima acerca deste ponto. Tudo aquilo que o monge vai fazer neste grau é feito sob a impulsão de amor a Deus: “O terceiro grau da humildade consiste em que, por amor de Deus... Por amor de Deus, o quê, então? Por amor de Deus, o cristão assume uma forma de vida que é essencialmente pôr em prática constante daquela divina sabedoria à qual ele se abre no grau interior.
4. Então, o terceiro grau é uma obediência sem reserva à vontade divina, uma obediência que se vive momento por momento. Nesta altura é necessário fazer alguns esclarecimentos. Primeiro, devemos levar totalmente a sério esta afirmação já citada de São Bento de que a obediência é consequência de amor. Não é certo dizer que o amor a Deus deve brotar gradualmente da prática de prestar obediência a Ele. O contrário é verdade: O amor encontra sua libertação na obediência. Para o amor, é uma bênção que a obediência se apresentou como uma modalidade concreta pela qual o amor poderia “viver-se”. O amor na vontade fica impaciente, fica literalmente frustrado até encontrar um meio de se soltar. E a ação é este meio. São Bento é absolutamente coerente neste ponto, nesta ligação entre amor e obediência, amor como fonte de obediência. Todo o grande capítulo cinco tão cheio de elã e misticismo baseia-se nesta intuição. Igualmente, a frase consagrada da Regra, o bonum oboedientiae – o bem da obediência, longe de ser algo irônico, ou ascético, exprime uma gratidão, uma gratidão pelo fato que há um jeito para o amor tornar-se a totalidade da vida.
5. Este é o ponto mais fácil. Certamente, o ponto mais difícil é a presença de um superior neste grau: “por amor de Deus, se submeta o monge, com inteira obediência, ao superior”. Aqui, o superior parece o “red herring” do ditado norte-americano. Prestar obediência a Deus, momento por momento, tudo bem… até místico. Mas como é que se intrometeu no meio da minha relação amorosa com Deus um outro homem? Não é aquele caso de comer gato por lebre, quando a gente aceita obedecer a um superior humano em vez de obedecer direitamente a um Deus amado?
6. Talvez ajude a pensar, em primeiro lugar, em Jesus (com quem termina este terceiro grau), pensar no início e no fim da sua obediência. O início se encontra nas margens do Jordão, na hora de seu batismo. João Batista imagina que a obediência de Jesus pode ser prestada direitamente e unicamente para o Pai, sem ter a mínima ideia que ele mesmo pode ser o instrumento da submissão de Jesus ao Pai celeste. É o próprio Jesus que discorda, falando da necessidade de “cumprir toda a justiça”. Para mim esta cena forma um díptico (um ícone duplo) com a cena no Horto das Oliveiras. Lá, no fim da sua obediência, Jesus confia em seu coração para compreender o que o Pai vai querer dele, e ele mesmo realiza a entrega de si mesmo sem intermediário, ao passo que no começo, no batismo, Jesus obedece ao Pai, cumpre a justiça, em fazer-se um dentro da multidão que se aproxima de Deus por meio do ofício profético de João. (Paralelamente em Lucas, onde a mediação de João no batismo não é explícita, Jesus obedece ao Pai no início de sua obediência em ser oferecido a Ele por meio dos ritos e instâncias do Antigo Testamento: Ele é circuncidado no oitavo dia, ele é apresentado ao Pai no templo por Maria, José e o sacerdote Simeão no quadragésimo dia, ele é convidado a participar como adulto na celebração da Páscoa no templo quando atinge os seus doze anos. Ele é, na verdade, no início de sua obediência, o primeiro “oblato” da nova aliança).
7. Assim também entende-se o processo da obediência na tradição monástica. Para Cassiano, é óbvia no início do processo a necessidade de um pai espiritual que recebe a nossa obediência em nome de Deus Pai. Este “dublê” nos ensina a obedecer a Deus Pai, tanto por estimular e eliciar uma obediência generosa, quanto por sustentar a nossa obediência quando balança e por ajudar-nos a discernir pouco a pouco por nós mesmos o que Deus quer de nós. Precisamos de alguém que consegue fazer-nos agir conforme a uma vontade diferente do que a nossa. Precisamos de um outro indubitavelmente distinto de mim que exige com autoridade a realização da vontade dele. Isto porque ficamos profundamente presos em nossa vontade. Mesmo querendo agir segundo a vontade de Deus, não vamos conseguir sozinhos transferir a nossa lealdade fundamental a Deus de nós mesmos. Temos necessidade de um "trainer", alguém cujo direito de mandar em nós reconhecemos, e que realmente dá ordens. Nesta situação de obedecer a um ser humano por amor a Deus, tem como averiguar se estamos obedecendo ou não. É só olhar para a ordem dada e ver se foi cumprida. Não interessa se o sujeito desejava cumprir a ordem (como se salvasse por boa vontade); o único necessário neste caso – fácil para constatar – é se o que foi ordenado foi feito. Deixem-me contar-lhes a história de Ir. Guy e o computador. A moral final desta anedota é que a obediência a um ser humano nos revela se somos capazes de obedecer, e serve como o único método para eficazmente abrir a nossa vontade a vontade divina. “Quem vos escuta a mim escuta”, diz Jesus (citado por São Bento) no capítulo 5 da Santa Regra. Se desejarmos um dia pôr a nossa vontade entre as mãos de Jesus, temos que pô-la primeiro entre as mãos de um igual. Obediência aos homens é o grande ensaio para a vida mística.
8. Além da libertação da nossa vontade prática realizada pela obediência, há uma segunda bênção na vivência deste terceiro grau: a formação da capacidade de fazer uma leitura acertada, iluminada, daquilo que Deus pede de nós. Podemos chamar esta capacidade de discernimento ou ciência espiritual. Como diz São João da Cruz, “O que vale oferecer a Deus uma determinada coisa quando Ele nos está pedindo uma outra?” Obediência, então, não é só uma vontade reta e em seguida um tiro no escuro (“Tomara que seja isto que Deus queira”), mas o ato que verdadeiramente corresponde àquilo que Deus pede de nós. A possibilidade de identificar a resposta que corresponde à Divina Vontade se adquire por meio de um aprendizado a um mestre humano. (Segundo Cassiano em sua segunda conferência, esta é a justificação fundamental para a relação de obediência a um mestre). Podemos pensar como tipo de “antiexemplo” na história de Saul e Samuel, onde Saul realmente queria obedecer, mas de fato não obedeceu, porque não agiu conforme a vontade do Senhor, não era capaz de identificá-la.
9. Mais uma coisa: Quando assumida pelos votos monásticos, a obediência a um superior confere a este amor da qual falávamos e que busca sua expressão em ação, a qualidade própria a todo amor verdadeiro: a qualidade de eternidade. Não existe amor que não pretende ser “para sempre”, e São Bento aqui apresenta o amor eterno de Jesus ao Pai por meio das palavras da Carta aos Filipenses: “Fez-se obediente até a morte”. Se, de fato, a obediência é o amor dinâmico, o amor que se prova por meio de atos, ela vai querer ser para sempre, ela vai querer ser “compromisso”. Compromisso, irmãos, é muita coisa: é intenção, é coragem, e também é humildade. O compromisso declara a intenção de permanecer em todas as circunstâncias e todos os tempo no elã da entrega amorosa; o compromisso exprime uma fortaleza de alma que já levou em consideração todas as dificuldades possíveis a ficar firme nesta entrega e mesmo assim cria coragem para enfrentá-las (inclusive as dificuldades futuras e ainda desconhecidas) – e ao mesmo tempo, o compromisso reconhece nossa fraqueza inerente, reconhece que a gente não é uma 14. pessoa de absoluta confiança, e portanto, se compromete por voto, a fim de que, na hora em que uma vontade nossa que não é de Deus surgir contra a vontade de Deus que tínhamos acolhido e o conflito nos empurra para a desistência, o voto fica em pé como revelação da nossa vontade mais profunda, e nos mantém em pé, mesmo contra nós mesmos (isto é, o “nós mesmos” do momento da tentação). Uma obediência oferecida só a Deus sem a mediação da Igreja, sem um superior, pode facilmente cair na época de uma grande tempestade interior. Em contrapartida, uma obediência a Deus acolhida pela Igreja e apoiada por uma comunidade e seu superior, tem boa esperança de realizar seu desejo mais profundo: de ser a encarnação de um amor a Deus que é para sempre.
10. E se sentimos que esta nossa entrega a Deus está sendo desviada pelo superior, pela instituição, será que a luz divina pode também irradiar esta situação? Se a pergunta os interessa (e espero que interesse), não percam o próximo número da série – O Quarto Grau – onde São Bento se pronunciará acerca desta questão.
* A presente conferência foi proferida em agosto de 2005 no Noviciado do Mosteiro Trapista de Nossa Senhora do Novo Mundo (Campo do Tenente/PR).
CONTINUA EM 26/09/2017