Blog › 11/09/2017
Em busca de uma luz, II
Dom Bernardo Bonowitz, OCSO
1. Esta luz que manifesta que Deus é e que a sua bondade e justiça agem para alinhar a nossa vida à sua pouco a pouco realiza em nós, segundo a Regra, uma mudança no que diz respeito de nossa vontade. Antes, vivíamos tão próximos à nossa vontade própria que simplesmente cumpríamos tudo aquilo que ela sugerisse, sem dar-nos conta que a nossa vontade teria possibilidade / capacidade de se dedicar a um projeto maior do que a satisfação de seus impulsos, ou que existia um outro projeto - um "projeto" que goza de direitos sobre nós.
2. A descoberta que Deus é, que Ele é santo e central, decisivo não apenas em sua própria vida mas em toda vida, nos faz repensar a relação entre nós e a nossa vontade. Pela primeira vez, percebemos uma distinção. Torna-se claro que podemos existir e permanecer sendo nós mesmos sem simplesmente sempre seguir os ditames de nossa vontade pessoal. Pelo contrário, se o nosso ser e seu destino último são tão intimamente ligados a Deus, parece que atingiríamos a nossa identidade muito mais em abrir-nos à vontade Dele, em dar livre curso àquela criatividade divina que nos habita e nos modela. Em vez de deixar esta criatividade ficar no nível do inevitável ("Deus vai fazer mesmo aquilo que Ele quer"), seria possível voluntariamente criar espaço/oportunidade para esta ação (São Bernardo: Graça e Livre-arbítrio).
3. Ao mesmo tempo, sentimos a necessidade de uma escolha. Sem em nada diminuir o nosso afeto para, com nós mesmos, vemos que não podemos simultaneamente abrir-nos a esta outra Vontade, e continuar paparicando a nossa vontade própria. Se experimentamos bem o impulso inicial desta luz no primeiro grau, viemos a acreditar que seremos mais nós mesmos enquanto em harmonia com Deus do que quando nós nos afastamos dele por correr constantemente atrás do objeto momentâneo de nosso desejo atual (que está sempre mudando, como sabemos). Dizer isto é dizer que conseguimos intuir a distância entre concupiscência e vontade profunda, e que, por mais que a concupiscência seja excitante como experiência, o caminho para a nossa verdadeira humanidade não passa por lá.
4. Abre-se, então, uma fresta. Conforme São Bento diz neste segundo grau, não amamos mais a nossa vontade própria. Em outras palavras, não a veneramos mais simplesmente porque ela surge de nós e nos estimula para ir atrás de alguma satisfação. Não adoramos mais a nossa energia vital, simplesmente porque é nossa e sentimos a sua pulsação dentro de nós. Valorizamos a nossa vontade precisamente por ser capaz de ser encaixada dentro de uma vontade maior, por ser o lugar principal de nossa sintonia com Deus. O deixar aberto das fronteiras de nossa vontade à vontade divina é o ato principal e contínuo de adoração humana. Mas não só deixar aberto - acolher e compreender e praticar. É exatamente nesta altura que São Bento introduz o Cristo pela primeira vez neste tratado, Cristo como o homem por excelência que faz a sua vontade humana perpetuamente acessível e disponível ao movimento da vontade divina. Cristo aqui se define especificamente em termos de sua escolha relativa ao emprego de sua vontade: “Eu não vim fazer a minha vontade, mas a daquele que me enviou.”
5. Houve uma mudança surpreendente, surpreendente justamente para aquele que passa por ela: Não é mais apetecível, não interessa mais, fazer de nossa vida um ciclo interminável de desejo – esforço para alcançar o objeto desejado – satisfação – posse – novo desejo. São Bento diz, não como exortação mas como simples fato, que o sujeito não encontra mais graça nesta busca perpétua da satisfação para os nossos desejos. Em algum momento tornou-se insosso: “Não amando mais a sua própria vontade, não se deleita mais em realizar os seus desejos.” (E interessante que a tradução portuguesa de Juiz de Fora coloca como exortação. Não se deleite. Mas não é assim que se lê o texto latim, mas: Não se deleita. Mero fato). Desde agora, de fato, o desafio vai ser como abrir cada um de nossos desejos, enquanto se manifestam, à única vontade salvífica de Deus.
6. Sem Deus, a perda de interesse em ir atrás dos nossos desejos seria trágica, seria autodestrutiva. O homem não vive sem desejos, não se movimenta sem desejos. Onde nada é desejável, neste mesmo instante paramos. Mas São Bento não diz que o homem perdeu a força de seu desejo, mas sim, que o homem encontrou um novo deleite: ativamente e amorosamente coloca a energia de seu desejo à disposição de alguém que agora ele reconhece como “Aquele que me enviou”. É verdade que o Pai enviou Jesus ao mundo de uma maneira muito especial. Ao mesmo tempo, é perfeitamente lícito, e até profundo, chamar-nos os enviados de Deus ao mundo - todos nós, todo ser humano.
7. Este segundo grau descreve a mudança que a luz de Deus produz no nível de vontade. No terceiro grau veremos como esta mudança se traduz em ação, num estilo de vida.
8. Uma última reflexão: No fim deste grau, Bento coloca uma antítese final: A vontade (própria) traz consigo a pena e a necessidade que gera uma coroa. “Necessidade” hoje em dia não é uma palavra de associações agradáveis. Nos faz pensar em opressão, em constrangimento, no sentido forte, em frustração da nossa vontade por um poder extrínseco. Aqui, porém, não é assim. Em primeiro lugar, é o próprio ser humano, o próprio sujeito, que por meio de uma decisão livre, opta por não viver mais por indulgência. Neste sentido é uma expressão de liberdade. Mas importante, acho que para São Bento, os termos soavam diferentes. "Voluntas" tinha a ver com moleza, com falta de reflexão, com ceder sem resistência a toda onda de impulso corporal ou afetivo. “Necessitas”', por outro lado, tinha a ver com discernimento – a identificação daquilo que as circunstâncias exigiam – e com uma corajosa disposição de agir conforme a verdadeira situação, mesmo quando custe. Os Padres diriam que até este momento tínhamos anima; no segundo grau começamos a criar ânimo.
(CONTINUA EM 19/09/2017)