Blog › 05/09/2017

Em busca de uma luz, I

Dom Bernardo Bonowitz, OCSO

1. Estamos em busca de uma luz – forte, forte, constante, única- capaz de orientar-nos, em nosso pensamento, nosso comportamento e nosso afeto. Estamos em busca de uma estrela de Belém, uma referência, que fica no centro de nossas vidas, e de lá se irradia, iluminando tudo, até as fronteiras de nossa existência. Precisamos de uma intuição -e convicção- central, que serve como base e orientação em todas as nossas atividades e sofrimentos.

2. Sabemos que, na tradição beneditina, esta luz tem algo a ver com humildade. Mas na verdade, humildade não é a luz que irradia a nossa existência- é o reflexo desta luz, é a consequência, a transformação realizada em nós por meio do encontro com esta luz. Não é realmente o nosso dever principal, mesmo como monges, de tornar-nos humildes, nem de esforçar-nos para tornar-nos humildes, e sim, de descobrir esta luz, de manter-nos dentro dela, e deixá-la iluminar-nos. A humildade será um efeito colateral, um sinal ( mais para os demais do que para a gente) que a luz está surtindo efeito.

3. Mesmo assim, acho que podemos tomar o capítulo sete da Regra como instrumento de trabalho, como contexto para nossa reflexão sobre aquela luz que buscamos, que ilumina todo homem. Quando eu era noviço, o capítulo foi interpretado em termos dos capítulos anteriores: Os primeiros quatro graus tratavam da humildade de obediência (cap. 5), os últimos quatro da humildade do silêncio (cap. 6) e os quatro do meio, da humildade da humildade (cap. 7), por assim dizer. Hoje em dia acho mais profundo, e pelo menos mais relevante a este projeto que estou apresentando, manter esta divisão de três partes , mas tomando uma outra ótica: Os primeiros quatro graus ressaltam de nosso encontro/nossa relação com Deus, os próximos de nosso encontro com nós mesmos, e os últimos de nosso encontro com a comunidade, com o próximo. Não há dúvida que esta é uma interpretação cisterciense do capítulo – para os nossos padres, a nossa existência é sempre e acima de tudo, pessoal, isto é, centrada em pessoas . Nisto eles estão em continuidade com toda a tradição bíblica e patrística da Igreja.

4. São Bento nos aconselha: “Quando encetares algo de bom, pede a Deus com oração muito insistente que seja por Ele plenamente realizado” (Pról.4). Vamos pedir que esta consideração que vai durar alguns meses nos aproxime um pouco mais desta luz, que é de todas as coisas a mais necessária- uma luz que ilumina e alegra toda a nossa existência.

5. Esta luz, numa primeira compreensão, já nos é dada no primeiro grau da humildade. Qual é esta luz? Deus é. Esta é a verdade mais alta da existência: Deus existe. O cosmos, a evolução, a história da civilização, as produções da ciência e da arte, a subida e queda de impérios, o crescimento e interação de culturas, as descobertas macro e microscópicos – toda esta grandiosidade que tanto nos impressiona decorre e está infinitamente aquém de uma única eterna realidade: Deus- Aquele que é, que era e que há de ser. Igualmente, todas as coisas da gente- os nossos planos, os nossos anseios, a nossa história familiar e pessoal, os nossos interesses, as nossas realizações e derrotas- todas estas coisas que tanto nos preocupam e tendem a nos absorver por completo- toda esta esfera pessoal minha, sua, procede desta única realidade, assim como nosso corpo, nossa alma, nossa ser. O universo nos parece infinito e a nossa vida individual parece de importância infinita, mas na verdade, a importância que o universo tem, que a minha vida tem, é totalmente dependente deste Mistério que é Deus, e em comparação com quem (assim diz o profeta Isaías) o universo todo não passa de uma poeira no balanço. Este sumo Mistério é tranquilo, é invisível, é espiritual, e portanto batemos nele o tempo todo sem darmos conta dele. Mas Ele é o centro criativo de tudo, a razão de ser de tudo, e o destino de tudo.

6. Ele é aquela luz que buscamos, mas dizer isto não põe fim à nossa busca. Luz é para ser vista, e afirmar (conjecturar) que há um Deus é tremendamente distante do que vê-lo. Este capítulo sete pretende ajudar-nos a vê-lo, a vê-lo tão claramente que nós nos tornemos luz- luz da luz, como diz o símbolo.

7. O primeiro grau da humildade propõe alguns exercícios iniciais para aumentar o grau de nossa visão. São iniciais, mas também são fundamentais, e também não são terminais. Representam primeiros passos permanentes. O primeiro exercício é um exercício de memória, é uma repetitio:
Deus é Mais do que qualquer outra coisa, temos que fugir o esquecimento daquilo que sabemos: Deus é. “O monge evite absolutamente qualquer esquecimento.” Temos uma parcela pequena desta luz que buscamos, temos a mera afirmação da existência desta suma realidade: Deus é. Mas daquilo que temos não podemos abrir mão. Ao contrário, a nossa tarefa é de cultivar e fortalecer esta memória, Deus é. Sabemos de nossas constituições quão importante é a noção de memoria Dei, e sabemos que todas as dimensões de interioridade de nossa vida- leitura, oração, silêncio, solidão, separação do mundo- visam a conservação e intensificação desta consciência: Deus é. O primeiro exercício, então, é de gravar este fato nas tábuas de nosso intelecto- Deus é- e de muitas e muitas vezes por dia, recorrer a esta inscrição. Quem Ele é, como Ele é, não podemos saber por enquanto. Então, paciência. Que Ele é, isto nós sabemos, e a gente trabalha com as ferramentas que a gente tem. Além disso, devemos buscar confirmação desta parcela da verdade na esfera da natureza e do cotidiano. Segundo Santo Agostinho, os pássaros, plantas, flores, planetas dizem para nós o que nós dizemos para nós mesmos: Deus é. Igualmente, os acontecimentos de nossa vida afirmam do seu jeito a mesma coisa. A doutrina de providência é simplesmente a afirmação que Deus é lida no background de nosso dia a dia.

8. Há um segundo exercício neste primeiro grau , um pouco mais complexo: Deus é, e portanto nós temos que estar em sintonia com Ele. O ser dele não está sem relação com nosso ser, o ser nosso não cessa de estar em relação com o ser dele após a nossa criação. A criatividade dele e a nossa relação com Ele continuam depois de sermos chamados para a existência: continuam como uma orientação para o bem, como um impulso para configuração com Ele. A nossa relação com Ele continua depois do nascimento em tornar-nos o reflexo dele na terra. “Eu disse: Vós sois deuses.”

9. Eu disse “uma orientação para o bem”, e esta é uma percepção dada juntamente com a intuição que Ele é, que Ele é bom. De onde pegamos esta convicção, que Deus não é poder neutro, e ainda menos malévolo, mas totalmente bondoso? Há muitas respostas certas, mas a mais importante delas é o testemunho de nossa própria consciência. Possuímos “uma lei em nossa mente”, um estímulo constante para amar e realizar o bem, um impulso inapagável a viver justa e retamente.
Esta orientação se faz sentir simultaneamente como coisa nossa e coisa alheia, como algo que nós mesmos queremos e algo que um Outro quer de nós. Provavelmente para nós seres humanos, o encontro mais constante com “Deus que é” se realiza na escuta perpétua da voz de nossa consciência.

10. Com isto chegamos ao último aspecto desta primeira experiência de Deus. Tão inseparavelmente ligados somos a Ele que o nosso destino eterno será definido pela relação que temos com Ele. Mais particularmente, o nosso destino eterno será marcado pela sintonia ou dissonância que se formou entre a sua criatividade em nós para o bem (a graça) e a nossa livre acolhida desta criatividade. Como se lê numa das cartas ao Timóteo, “Ele não pode negar-se a si mesmo”. O seu ser, o seu poder, a sua bondade permanecerão para sempre, e quem seremos, ou como seremos, dependerá completamente da nossa configuração a esta realidade.

11. Finalmente, a nossa correspondência ou falta de correspondência à esta “conformação” é o significado fundamental de toda a nossa atividade humana. Seja atos, palavras, pensamentos, desejos – tudo o que realizamos é realizado na presença de Deus e constitui uma resposta parcial mas cumulativa à ação criativa de Deus em nós. Nunca agimos fora desta presença ou desconectados desta presença. Nunca fazemos uma coisa “só para a gente”. Assim como Jesus diz, “O que fez a um destes pequeninos, foi a mim que fez”, Deus diz simpliciter, “O que fez, fez a mim.” E porque direcionamos absolutamente tudo para Deus, Ele recebe e anota tudo. Segundo São Bento, Ele ainda não publica sua avaliação veraz daquilo que fizemos a Ele (quer dizer, a nossa vida), mas não porque não está prestando atenção. Por enquanto, seu silêncio é sua paciência- é uma abertura contínua para ver-nos pensar melhor, e tornar-nos melhores- mas seu silêncio não é negligência. É a preparação para uma palavra definitiva sobre nós. Nosso futuro eterno é esta palavra+

 

 

(CONTINUA EM 12/09/2017)

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