Domingo de Ramos
O relato da Paixão e Morte de Jesus segundo Lucas quase sobrecarrega a nossa capacidade de assimilação. De todos os evangelhos, é o mais longo, o mais detalhado e com muitos incidentes particulares a Lucas e não encontrados alhures: o anjo da consolação no horto das oliveiras, o processo diante de Herodes (e não só diante de Pilatos), o encontro com as mulheres de Jerusalém, a oração pedindo perdão por seus carrascos. É difícil absorver o choque de tudo isso, tanto para as nossas pernas, como par as nossas emoções.
São Paulo nos ensina que no fim das contas o que permanece são três coisas; a fé, a esperança, e o amor. De fato, bem no final do relato lucano da paixão tem um incidente muito breve onde alguém (alguém surpreendente!) forma uma relação de fé, esperança e amor com Jesus. Este incidente é tanto mais tocante, quanto mais a gente escuta todas as expressões de ódio e zombaria dirigidas para Jesus por parte de quase todos os outros personagens.
Estou falando de um homem anônimo, a quem a tradição posterior atribui o nome de Dimas, e a descrição “o bom ladrão”, mas que na Bíblia fica sem nome. Melhor assim, porque quando o campo para o nome ainda não é preenchido, cada um de nós pode escrever o seu próprio nome.
Este criminoso possui todas as virtudes do discípulo. Ele tem a coragem de defender Jesus contra o escárnio do outro ladrão; ele tem a humildade de reconhecer que a sua própria morte horrível é consequência de seus pecados e que não há como queixar-se contra o seu destino (quão raro é alguém não buscar um bode expiatório para ser o “verdadeiro culpado” de nossas desgraças); ele tem o olhar não turvado que percebe que “este homem não fez nada de mal”.
Bom, estas são virtudes humanas, e já bastariam para fazer do bom ladrão um homem extraordinário, nas dadas circunstâncias. Mas não é por estas virtudes humanas que ele se torna inesquecível para nós, mas sim, por causa de suas virtudes teologais- a fé, a esperança e o amor. E todas estas virtudes ele vive e exprime numa única curta frase, que é uma proclamação e uma oração: “Jesus, lembra-te de mim quando entrares em teu reino.”
“Quando entrares em teu reino.” Assim, ele expressa a sua fé que Jesus é rei. Certamente, ele ouvia os insultos da multidão, “Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo.” Ou talvez era um ladrão alfabetizado (muito incomum naquela época) que conseguiu ler o letreiro acima da cabeça de Jesus, “Este é o rei dos judeus”. Seja por audição, seja por visão, este ladrão acreditou no que ouviu e leu. O que tinha sido colocado como máxima ironia (como pode a cruz ser o trono de um verdadeiro rei?), para o ladrão era a verdade. Os teólogos dizem que as virtudes teologais não surgem do coração humano, mas são infusas do alto, pelo próprio Deus. Deus ofereceu a este ladrão a graça de crer que, contra todas as probabilidades (e normalmente ladrões são céticos e prudentes), Jesus realmente era rei, seu rei, porque Jesus era rei dos judeus e com certeza o ladrão também o era. O ladrão acolheu a graça com ambas as mãos e com plena fé proclamou “Quando entrares no teu reino”.
“Lembra-te de mim.” Assim, ele dá voz à sua esperança. Pela fé, ele se faz súdito de Jesus, e agora ele pede o favor e a misericórdia do seu soberano. É quase loucura; é quase um absurdo. Como é que este rabino moribundo pode conceder uma vida, um futuro, a salvação a este ladrão, ele que aparentemente não é capaz de salvar a si mesmo, ele que recusou conceder lugares de honra a Tiago e João quando ainda estava numa boa? Mas esta é a esperança do ladrão: que Jesus, seu rei (desde um minuto atrás), possa agraciá-lo quando entrar na posse do seu reinado. Segundo São Paulo, sempre tem algo exagerado na esperança, como no caso de Abraão que “esperava contra toda a esperança” que Deus iria cumprir sua palavra e dar-lhe um filho. A esperança não se fundamenta num argumento, nas provas, nas porcentagens. A única base da esperança é a fé. Se Jesus é rei (e esta é a fé do ladrão) é nele que ele vai depositar a sua esperança. O que eu espero é que meus irmãos se lembrem destas palavras quando vier a minha hora, porque este é o texto que quero no meu santinho: “Jesus, lembra-te de mim.” Ele é a minha única esperança.
“Jesus”. Faz anos que me dei conta de que este ladrão é o único em todo o relato da paixão que chama Jesus por seu nome. Quantos palavrões Jesus não devia ter ouvido desde a sua prisão até a cruz. Como a humanidade gosta de humilhar uma vítima indefesa, especialmente uma vítima com pretensões imperiais. O texto bíblico, com muita reserva, só diz que os que vigiavam Jesus “o insultavam de muitos outros modos.” Não precisa de muita imaginação para adivinhar o tipo de linguagem chula que empregavam.
Mas este cidadão faz um oferecimento de amor a Jesus, devolvendo-lhe a sua dignidade ao chamá-lo por seu nome. É a última vez no evangelho que alguém o chama por seu nome. O primeiro é o anjo na hora de sua anunciação; o último é este ladrão na hora de sua crucifixão. E ambos com o mesmo amor. O anjo embala o novo-concebido em seu nome; o ladrão embala o crucificado nu na dignidade e glória do seu nome. Como sabemos, Jesus significa “Deus salva”, significa Deus salva pela pessoa de Jesus. Este nome, arrancado de Jesus desde o horto das oliveiras, o ladrão restaura a Jesus, como se fosse um lenço que tinha caído. “Este não é seu, meu rei?”
Este incidente quase conclui o relato da paixão, mas eu queria meditar sobre ele com vocês no início desta semana santa. Porque estas virtudes – fé, esperança, amor – são os instrumentos de boas obras dos quais precisaremos para realmente entrar nos acontecimentos desta semana. Estas virtudes abrem as portas da Semana Santa para nós e nos colocam por dentro, onde Jesus pode nos salvar e nós podemos experimentar sua salvação. Fiquemos com esta frase ao longo desta grande semana e voltemos a ela muitas vezes nestes dias de reverência, “yomim noraim”, como se diz em hebraico. “Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu reino.” Amém+
Homilia de Dom Bernardo Bonowitz no Domingo de Ramos de 2016 Mosteiro Trapista Nossa Senhora do Novo Mundo Campo do Tenente, Paraná