Blog › 21/02/2017

Diálogos com Jonathan Montaldo


intermediado por Colette Lafia, em novembro de 2015

tradução de Sieni Campos

 

Tive a grande alegria de conhecer Jonathan Montaldo há doze anos no Centro Santa Sabina em San Rafael, Califórnia, quando ele conduziu um retiro baseado nos ensinamentos de Thomas Merton. No transcurso dos anos, cultivamos nossa amizade, e sou grata pela conexão entre nossas vidas e caminhadas. Quando eu estava escrevendo Seeking Surrender, texto centrado em minha amizade com o Irmão René da Abadia de Gethsemani, em Kentucky, Jonathan incentivou e apoiou meu projeto.
Jonathan Montaldo é um dos principais eruditos especializados em Thomas Merton. Editou numerosos volumes de escritos de Merton e é ex-diretor do Centro Thomas Merton da Universidade Bellarmine, em Kentucky, que contém o maior dos arquivos da obra de Merton. O ano de 2015 foi movimentado para ele e seus colegas, que contribuíram em diferentes locais para celebrar o centenário de Merton (1915 -2015). Você encontrará mais informações sobre seu trabalho e seus livros em www.MonksWorks.com.

Jonathan fez setenta anos no dia 4 de outubro deste ano em que comemoramos o centenário de Merton. Disse-me que sente estar entrando em seus “setenta sagrados”, e a jovialidade deste comentário me fez querer saber mais. Pedi uma entrevista por escrito e uma conversa sobre sua vida e seu trabalho como acadêmico dedicado a Merton. Enviei-lhe minhas perguntas por e-mail. Ele acabara de pregar um retiro em Assis, na Itália, em 4 de novembro, após o qual escreveu as respostas em Roma enquanto esperava o voo para a Suécia, onde faria quatro apresentações durante um Simpósio Merton patrocinado pela Comunidade Ecumênica de Bjärka-Saby, monásticos que são principalmente Pentecostais.
Esse evento na Suécia (ele vai conviver com sua comunidade monástica diferente durante três semanas) encerrará as atividades de Jonathan nos festejos do ano do centenário de Merton, durante o qual este foi “elevado” ao reconhecimento pelo Papa Francisco em discurso perante o Congresso dos Estados Unidos em 24 de setembro. O Papa o descreve como “um homem de oração, um pensador que desafiou as certezas de seu tempo e abriu novos horizontes para as almas e para a Igreja. Foi também um homem de diálogo, um promotor da paz entre os povos e as religiões.” A seguir comparou-se com Merton como “construtor de pontes” por meio do diálogo para ajudar a superar diferenças históricas entre as pessoas e suas tradições religiosas.

De todos os seus projetos relacionados a Merton, quais são os seus favoritos — aqueles de que mais se orgulha?

Leio Merton desde meus treze anos de idade, interesse que foi despertado pela entrada de um primo mais velho na vida monástica Trapista-Cisterciense na Abadia de São José em Spencer, Massachusetts. Peguei sua autobiografia, A Montanha Dos Sete Patamares, na mesa de cabeceira do meu tio Bert e meu coração foi “fisgado”. Lembro-me de ler, a seguir, um livro de fotografias de monges que viviam no mosteiro francês de Pierre-qui-Vire, do século XII, cuja Introdução Merton escrevera. Esse livro, Silence in Heaven (Silêncio no Céu), apresentava a visão de Merton sobre a vida monástica da maneira mais romântica, com fotos profissionais e artísticas dos monges, inclusive os muito jovens. Ao ver meninos poucos anos mais velhos do que eu envergando suas cogulas brancas na Missa, com a luz das velas do altar brilhando em seus rostos, ouvi um “chamado” e quis estar naquela foto. Teria sido um prato cheio para um junguiano, especialmente se eu continuasse a falar sobre o que as palavras de Merton e aquelas lindas imagens despertaram em mim – uma dimensão da minha alma que nunca perdi ao longo de minha sinuosa jornada pela vida.

“De algum modo profundo que eu mesmo não posso compreender, continuo sendo — aos quase setenta anos – aquele menino piedoso que queria amar a Deus em uma comunidade monástica.”
Depois de entrar na vida religiosa aos dezessete, após cinco anos de estudo para ser Jesuíta na província de Nova Orleans, saí relutantemente da Companhia de Jesus, pois eu era imaturo demais para perceber que devia haver um modo íntegro e correto de ser ao mesmo tempo gay e padre Jesuíta. Renunciei aos meus votos em 8 de dezembro de 1967, aos 22 anos, na esperança de crescer. Distanciei-me de uma vocação que amava e para a qual de fato era chamado (entendo isto agora), dando à minha tentativa imatura a designação de “imaculada concepção errada”.
Convocado quando estava na pós-graduação, alistei-me na Marinha mas fui para Da Nang, Vietnã, servir em Freedom Hill, um dos dois caras da Marinha em uma base de Fuzileiros Navais. Evitávamos problemas e nos escondíamos nas sombras, sabendo que era mais fácil morrermos no fogo cruzado dos fuzileiros do que feridos pelos norte-vietnamitas. Fiquei estacionado na Virginia, e depois, por gloriosos dois anos e meio, em Nápoles, na Itália, antes de receber o título de Mestre em Teologia e Literatura da Emory University com uma tese sobre Merton: “Toward the Only Real City in America: Paradise and Utopia in the Autobiography of Thomas Merton” (Rumo à Única Cidade Real nos Estados Unidos: Paraíso e Utopia na Autobiografia de Thomas Merton). Eu estava com vinte e nove anos e datilografava cartões de biblioteca para poder comer enquanto estudava, então decidi não fazer doutorado, mas conseguir um emprego que assegurasse minha sobrevivência. Isto foi em 1974.
Em 1986 – poupando-lhe os detalhes da minha vida errática – alguns amigos por fim se deram conta de que eu estava sem rumo e insistiram para que eu participasse de uma firma com eles, o que me proporcionou, sete anos depois, uma ótima situação financeira. A seguir, tomei um ano sabático cuidando de tarefas leves na firma e assumi um projeto para Robert Daggy no Centro Thomas Merton de Bellarmine, em Louisville.
Em Nova Jersey, onde estava morando, usei fotocópias e uma máquina de escrever para reproduzir em fac-símile quatro dos cadernos de trabalho de Merton, que quase ninguém conseguia ler (havia cinquenta e um desses “cadernos de leitura” só no acervo de Bellarmine). Adicionei notas de rodapé e bibliografias dos livros que ele estava lendo e entreguei tudo a Bob Daggy – que se encantou.
O Irmão Patrick Hart, meu amigo desde a época da pesquisa que fiz em Gethsemani para minha tese, em 1974, também ficou impressionado. Quando foi nomeado Editor Geral dos diários completos de Merton, que seriam publicados pela editora HarperSanFrancisco em sete volumes, perguntou se eu estava interessado em editar o segundo volume, que se tornou Entering the Silence: Becoming a Monk and a Writer (A entrada no silêncio: tornar-se monge e escritor). Morri de medo e disse “Mas é claro!”. Assim começou meu caminho como servidor do legado de Merton até agora. Todo Natal escrevo ao Irmão Patrick um cartão expressando, uma vez mais, que ele é o pai da minha vocação madura e verdadeira. Ele me tirou do nada e me levou a trabalhar no que, visto retrospectivamente, pareço ter nascido para realizar.

“Cheguei aos setenta anos no mês passado e sinto que preciso abandonar aos poucos a balsa que os textos de Merton me deram para eu atravessar o rio da minha vida.”

Escrevi sobre Merton em ensaios e introduções a minhas edições de seus livros, mas, de certo modo, nunca falei com minha própria voz, escrevendo muito cedo que sabia que os editores devem apagar-se atrás de seus autores.
Mais de uma vez me perguntaram onde termina Merton e começo eu. Com certeza me identifico demais com a caminhada de Merton em busca de Deus na vida monástica, mas nunca quis conhece-lo pessoalmente em Gethsemani. Alguns amigos meus, sim, mas não os invejei. Não me interessava apertar a mão de Merton.
“Mesmo no Centro Merton, quando peguei em minhas próprias mãos seus diários pessoais, não foi Merton que me trouxe lágrimas aos olhos, mas seus textos, através dos quais encontrei um lugar onde viver, evoluir e ter meu ser. O coração falou ao coração, mas só nos textos, nas palavras, nos gestos que ele me comunicou sobre um caminho em direção a um tipo de vida com o qual eu sonhava quando era menino.”
Em reunião recente da Sociedade Merton Britânica em Oakham, perguntaram aos quatro oradores da plenária por que se interessavam por Thomas Merton. Na minha vez, eu disse que Merton fora como uma balsa para mim, mas, como ensinou Buda, uma vez que você junta diferentes materiais e improvisa uma balsa para atravessar um rio sem ponte nem ferry, depois você tem de largar a balsa e continuar caminhando com seus próprios pés. Ao dizer isto, chorei diante daquela multidão majoritariamente britânica – só posso imaginar seu horror por essa demonstração de impropriedade.
Desde 2012, quando a formulei em público, repeti esta intuição muitas vezes até um amigo cansar e me dizer: “Olha, cara, você ainda está se aferrando à sua balsa Merton, só que está se dando conta de que você e a sua balsa estão indo em direção a uma catarata. Curta o raio da queda e cale a boca.”
Então, olhando retrospectivamente – por fim respondo à sua pergunta -, meu trabalho favorito é o projeto que o Irmão Patrick empreendeu para dar ao editor uma “antologia” que combinava em um só os sete volumes dos diários de Merton. Produzimos um livro de sete capítulos, cada um correspondente a um volume, que foi altamente editado, o que assinalei de forma transparente para o leitor na introdução. Foi o projeto mais prazeroso que já empreendi. Fiz meu próprio caminho através dos bosques dos diários de Merton para produzir Merton na intimidade: Sua vida em seus diários.
Embora eu depois apresente os escritos de Merton sob muitos aspectos – volumes como Dialogues with Silence: His Prayers and Drawings, A Year with Thomas Merton, e Choosing to Love the World: Notes on Contemplation (Diálogos com o Silêncio: Suas Orações e Desenhos, Um ano com Thomas Merton e Escolher Amar o Mundo: Notas sobre Contemplação) -, sou grato ao Irmão Patrick sobretudo por ter-me permitido produzir com ele minha apresentação “íntima” de quem era Merton à luz de minha própria leitura e de minha perspectiva pessoal de vida sobre quem ele era.

Ao longo desse caminho, houve momentos em que você se achou consumido demais com Merton e se perdendo a si mesmo?

A resposta breve é nunca. Nunca me canso de ler e falar sobre os valores que descobri ao ouvir a “voz” de Merton. O texto dele foi meu mentor, e em seus textos descobri consolação duradoura por ter feito muita besteira na minha caminhada para ser um ser humano mais profundo e mais inclusivo. Seus textos foram espelhos para mim.
À medida que Merton revela com arte suas lutas, fui sentindo que minhas próprias lutas para tornar-me um ser humano mais profundo e amplo, viver de forma expansiva com mais coragem, honestidade e alegria, são a verdadeira substância para a elaboração da vida “espiritual”.
Merton me ensinou que sempre serei um noviço, todos os dia recomeçando, e que, faça eu o que fizer para cuidar da minha vida interior e servir ao próximo, sempre terei de me ajoelhar e esperar pela misericórdia que, como sei por experiência própria (e pela de Merton, de que seu texto está impregnado), nunca posso proporcionar a mim mesmo. Ao escrever esta resposta, estou pensando no final do Diário de um Pároco de Aldeia, de Bernanos, que termina com o reconhecimento pelo sacerdote de que ele deve contentar-se com quem realmente é: “Estou reconciliado com minha pobre, pobre casca. Tudo é graça.”

Você gostaria de compartilhar algum pensamento sobre como viver a caminhada espiritual?

Não. Os pensamentos que comuniquei por escrito sobre “a vida espiritual” destinam-se a compartilhar a maneira como vejo a teologia vivida por Merton e manifestada por seus escritos, todos eles – diários, reflexões espirituais, cartas, poemas, manifestos políticos, apelos à justiça social e à não-violência.
Mas se você me pedisse para ser totalmente franco, eu diria que foram seus escritos autobiográficos que mais me ensinaram. Quanto mais a fala de Merton é pessoal, mais se torna universal. Eu o entendo e me entendo quando ele deixa de lado a pose de monge santo e conta ao seu leitor como é para ele.
Os escritos autobiográficos de Merton, que ele chamou de sua “arte da confissão e testemunho”, foram para mim – e para centenas de milhares de outros leitores que se descobriram em sua revelação – a grande balsa, veículo para um “caminho” a ser percorrido ao avançar na escuridão e na alegria de estar vivos e despertos enquanto passamos pela total catástrofe de sermos humanos. Seu escrito autobiográfico é um testamento de sua transparência compassiva para com o leitor. “Você está bem atolado, leitor, e eu também, mas são muitas as possibilidades de contemplação criativa e de ação quando você permanece na estrada que leva à alegria.”

Você acabou de fazer setenta anos. O que é mais importante para você agora?

Sempre concluo meus retiros da mesma maneira. Digo em voz alta que, “se há uma coisa que aprendi com Thomas Merton, é que se pode escrever e falar lindamente sobre a vida espiritual sem de fato viver uma linda vida espiritual. Então eu lhes peço (às vezes minha voz treme, mas costumo ficar firme ao fazer este apelo) que, ao sair daqui, rezem por mim para que alguém como eu, que ousa apresentar “ideias” sobre a vida espiritual em público, não acabe ele mesmo se perdendo.”
Se eu puder, agora quero por fim manter-me sobre meus próprios pés e, nas palavras de Mary Oliver, “deixar meu corpo brando amar o que ele ama”.
Passei décadas olhando com preconceito a vida religiosa institucionalizada, desdenhando a própria ideia da busca de Deus e da santidade. Percebo (só tive essa “epifania” semana passada em Assis) que esse era meu mecanismo de defesa para me distanciar de minha desilusão duradoura comigo mesmo por ter sido incapaz, devido a tantas fissuras na minha personalidade, de viver a vida que vislumbrei para mim mesmo ao ler Silence in Heaven.

Sim, sempre quis ser monge, mas minha personalidade não o possibilitou. De fato, penso que as velhas formas de vida monástica institucionalizada (há experimentos por toda parte) estão em vias de extinção. A Abadia de Gethsemani um dia será uma comunidade monástica verdadeiramente experimental aberta ao mundo, ou se tornará uma “Trapistalândia”, uma espécie de parque temático onde (jovens) atores contratados cantam em coro sete vezes por dia. E, todo dia às duas da tarde, o visitante pode assistir a um funeral Trapista enquanto um manequim vestindo hábito cisterciense é baixado à cova, mas sem que se espalhe a camada de terra no final, pois no dia seguinte haverá outra encenação. Isto não quer dizer que a vida Trapista norte-americana desde meados do século XIX tenha sido em vão. Muitos homens e mulheres foram salvos pela Regra de São Bento, em particular pelo carisma Cisterciense.
Mas, a meu ver, ultrapassamos um ponto de inflexão. Os veteranos estão quase todos lá, e os que conheço são seres humanos profundamente expansivos, compassivos e alegres. São cheios de generosidade, motivados por um apreço por sua própria humanidade e a de todos os demais. Os tempos, contudo, não favorecem a continuidade exatamente da mesma maneira no caso dos que estão chegando agora. Eles vão encontrar seus próprios caminhos, alguns deles sem dúvida formais, mas de maneiras que serão diferentes do tipo de vida monástica que Merton amava, a qual, contudo, sabia e previa que deveria acabar sendo proveitosamente transformada.
Pessoalmente, estou aprendendo a morrer bem. Estou me treinando para quando chegar a hora, e quem sabe se será em breve, talvez esta noite. Eu gostaria de, se estiver consciente, morrer com lágrimas de gratidão por todas as bênçãos que recebi através de tantos que me amaram apesar de mim mesmo e, mais milagrosamente, me amaram apesar de si mesmos. Quero morrer, se estiver consciente, dizendo a quem estiver segurando minha mão, mesmo se for um profissional de enfermaria desconhecido – que seja gay, por favor, mas, em todo caso, prefiro uma enfermeira -, que não fique triste. Ultimamente, tenho dito a mim mesmo repetidas vezes, ao me treinar, que tudo foi graça. Espero que, ao sucumbir, toda a minha vida e as pessoas que dela fizeram parte passem diante dos meus olhos, como ocorre com os afogados. E, nas palavras de Mary Oliver, dou-me conta com gratidão de que “fiz mais do que passar pelo mundo a passeio”.

Jonathan Montaldo
6 de novembro de 2015
Roma, Itália

Você pode entrar em contato com Jonathan escrevendo para jonathan.montaldo@gmail.com.

Para mais informações, visite: www.MonksWorks.com.

1 Comentário para “Diálogos com Jonathan Montaldo”

  1. comunidade grão de mostarda disse:

    Agradecer a Jonathan Montaldo a fidelidade à sua busca incessante e… feliz. Não o conhecíamos. Partilhamos (e sistematicamente aqui, na comunidade, nos interrogamos também) a sua interrogação pelo designado «modelo monástico». Talvez Merton tivesse sido a “pedra de toque” para mudança.
    Agradecer ainda a Colette Lafia, assim como a vós Associação T. Merton, terem-nos permitido conhecer Jonathan, homem inteiro.

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