DEUS E O SENTIDO DA VIDA
por Sérgio de Souza
Os grandes homens têm a exata capacidade de nos dizer coisas desconcertantes, de nos contradizer em nossas convicções mais profundas e, com seu pensamento, remexer em nossas concordâncias.
Até onde cheguei em matéria de reflexão sobre sentido da vida, tudo indica que, encontrado seu sentido, a vida ganha encanto. Quando a gente descobre o sentido da vida tudo ganha cor, sabor, música. Aí vem o Cioran e joga uma colher de fel em cima. Primeiro você reage com irritação, depois põe-se a pensar, considera a possibilidade do cara estar correto e acaba chegando à conclusão de que provavelmente está, sem ter necessariamente de abandonar sua posição anterior (especialmente em casos como o meu: um adepto arraigado de minhas convicções).
Depois de muito matutar, acabo chegando à conclusão de que Cioran deve estar um pouco certo e um tanto errado também, porque um objetivo que define uma vida inteira, de maneira clara e inequívoca, só pode ser uma ilusão. Ninguém consegue dar à vida um objetivo cabal, capaz de jogar luz em tudo, até o fundo, em todos detalhes, que permita traçar um plano tão seguro a ponto de tornar a vida insossa (“perde instantaneamente o seu atrativo”). A aquisição do sentido da vida é algo precário. Não estou querendo bater boca com Cioran, até porque concordo quando ele diz que uma vida com um objetivo rápido e fácil (“instantaneamente”) perde o seu sabor, mas o caso é que a sua frase fala de outra coisa quase impossível, que é a aquisição dessa percepção absoluta de um sentido geral.
O sentido da vida não é algo que você domestique e domine. Não é um brinquedinho em nossas mãos para que o manipulemos como se fosse um instrumento para afastar de vez nossa insegurança existencial. O sentido da vida é da ordem do mistério. E é invisível. “Este está acima e adiante da empiricidade deste mundo. O Sentido com maiúscula, o sentido último, o sentido do todo tem caráter “meta-físico” e “meta-histórico”. Ele não pode ser visto a céu aberto. Não é um fenômeno, mas um noúmenon: só pode ser visto pelo pensamento.” (“O Livro do Sentido — vol. 1”, Clodovis Boff).
Há autores que chegam a dizer, por conta dessa intangibilidade, que o sentido é fabricado, que é inventado a cada momento porque o ser humano não suporta que a vida seja apenas matéria, que a morte seja o fim, e que depois desta existência venha o nada. Por isso, vão dizer que o homem precisa do senso de transcendência dado pela arte, pela ciência, pela política, pela filosofia ou pela religião. Dizer que o sentido precisa ser inventado é dizer efetivamente que a vida não tem sentido e que é nosso olhar o que projeta sobre ele significado e ordem. É dizer que esse mesmo sentido não é descoberto, que não nos é dado, mas elaborado por nós a fim de suportar a dureza e a falta de significado desta existência. E que esse senso de transcendência, se de fato é uma elaboração meramente humana, também é um consolo transmitido por uma ilusão.
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Acabei de escutar em um programa de entrevistas no YouTube: “Toda essa coisa esotérica, sobrenatural, mística, é essencialmente histórica, é essencialmente cultural. Não é que exista um Deus que se demonstra de diferentes formas para culturas diferentes. Esse ‘Deus’ é o próprio cérebro. Quem vai saber responder melhor às suas questões é você mesmo”.
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É óbvio que acredito em um sentido muito próprio de elaboração e criatividade, e que a cultura, as artes, a ciência, a política, a filosofia e a religião são, em certo sentido, resultado da busca humana por sentido. Mas eu também acredito em Deus. Até simpatizo com a ideia de colher com criatividade a cada momento o sentido para cada dia. Colher o sentido diariamente é uma forma de praticar a arte da atenção. Para colher é preciso antes buscar, contemplar, discernir. Como sou cristão, minha busca parte de um lugar. Não é uma busca cega, às apalpadelas. São Paulo, no areópago, fala aos gregos “muito religiosos”, citando um poeta grego (olha aí a cultura como resultado da busca de sentido), e dizendo que, antes de Cristo, Deus era buscado às apalpadelas (como que tateando no escuro), mas agora, “pelo ministério de um homem que para isso destinou”, o “Deus desconhecido” mostrou o seu rosto. “Oh, se rasgásseis o céu descêsseis!” (Is 63,29), clamavam lamuriando os judeus do Antigo Testamento. E foi o que Deus fez.
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Tendo em vista a invisibilidade do sentido da vida acima descrito, pergunto:
O homem tem fome e sede de que?
De felicidade, de autenticidade (verdade), de beleza e plenitude, de vida, de ser quem é, de ser quem Deus o criou para ser. “Subsiste no coração humano o desejo incoercível de ver e de abraçar concretamente o sentido.” (Clodovis Boff). O homem tem fome e sede de ser, pois só o possui precariamente, visto que é contingente e criatura. Essas fomes e sedes abrem o homem para o infinito. É por isso que Cristo fala no evangelho: “Quem vem a mim não terá mais fome e quem crê em mim nunca mais terá sede”. Ele é a expressão do Ser para o homem. Deus humanado, Logos divino feito carne. Ecce homo. A aspiração mais profunda do desejo humano. Em última análise, a fome e sede do homem, é fome e sede de Cristo. É por isso que ele se apresenta como o pão do céu, único capaz de saciar o coração faminto do homem. “Para a fé cristã, o sentido se realizou no mistério da encarnação do Verbo. Aí o sentido se tornou visível aos olhos humanos. É o que enfatiza São João no prólogo de seu Evangelho, onde declara: “O Verbo se fez carne” (Jo 1,14). Aí se proclama que o sentido (logos), habitando no mundo e permeando-o, se fez carne (sarx), isto é, tornou-se concreto e visível em Jesus de Nazaré.”
O homem traz dentro de si uma profunda inquietude e insatisfação, e, ao mesmo tempo, a serenidade de ter encontrado a Cristo. O fato de ter visto Cristo (“toda pessoa que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna.” Jo 6,40) não significa que o sujeito tenha apreendido complemente o sentido da vida. Deus nos deu em Cristo tudo o que podia nos dar, mas nossa capacidade de apreensão é limitada. Assim termina Thomas Merton seu belíssimo relato de conversão e descoberta da vocação, “A Montanha dos Sete Patamares” (e assim também eu escolho terminar esse texto, tendo novamente as palavras de Cioran em perspectiva):
“SIT FINIS LIBRI, NON FINIS QUAERENDI”
“Aqui termina o livro, mas não a busca”