“Em consciência, sinto que não posso, em um momento como este, continuar escrevendo só sobre questões como a meditação. Acho que devo me confrontar com as grandes questões, as questões de vida-e-morte”. “O Catholic Worker é parte da minha vida, Dorothy. Tenho certeza que o mundo está cheio de pessoas que poderiam dizer o mesmo. Se não existisse o Catholic Worker, eu nunca teria entrado na Igreja Católica”. A quem pertencem essas palavras? E quem era essa Dorothy?
Quem escreveu assim foi Thomas Merton (1915-1968), o grande monge trapista norte-americano, convertido ao catolicismo a partir de posições ateístas e marxistas muito famoso pela sua autobiografia A montanha dos sete patamares.
E ela era Dorothy Day (1897-1980), fundadora do movimento social Catholic Worker, desde sempre comprometida com os direitos dos “últimos” nas metrópoles dos EUA em nome do Evangelho. Uma fiel também marcada pelo drama de um aborto antes da sua própria conversão, hoje no caminho da santidade: a arquidiocese de Nova York, anos atrás, abriu o seu processo de beatificação.
Dois gigantes do catolicismo yankee, portanto, dos quais, hoje, podemos apreciar o entendimento muito firme, cultural e espiritual, através de suas correspondências. São inúmeras cartas que Day enviou a Merton, agora disponíveis no recente All the Way to Heaven, livro que reúne as “cartas selecionadas de Dorothy Day”, recém-lançado nos EUA por Robert Ellsberg (Marquette University Press, 454 páginas).
Na troca de cartas – as de Merton podem ser deduzidas no belíssimo A Life in Letters (Ed. Harper One, lançado nos EUA em 2008) –, os registros dos dois interlocutores são variados: Day aponta muito sobre a autobiografia, Merton “voa alto”.
“No dia 25 de julho, vou para Montreal para fazer um retiro com os interessados na família espiritual de Charles de Foucauld”, escreve a ativista de Nova York em junho de 1959. “Estou tentando entrar tanto no movimento leigo quanto na sua associação. Mas não tenho certeza que eles me querem”. Para, depois, comunicar, no dia 22 de janeiro de 1960: “Já lhe disse que sou uma postulante na Fraternidade da Caridade de Jesus na família de Charles de Foucauld? Reze por mim”. Algumas confidências nos colocam a par do compromisso social de alto risco de Day: “Já recebemos duas ameaças de bomba, e fui ameaçada em público em um encontro na ONU” (novembro de 1965).
Entre os dois interlocutores, não faltam as trocas literárias: “O seu belíssimo ensaio sobre Pasternak me manteve acordada até as quatro da manhã”, escreve Day ao monge. E Merton responde (29 de dezembro de 1965): “O seu Catholic Worker, para mim, tem um significado muito importante: eu o associo aos dominicanos ingleses, a Eric Gill e a Maritain”.
A expoente do Catholic Worker não poupa elogios ao escritor trapista: “Não me lembro se lhe agradeci pelo seu esplêndido artigo sobre Camus [e a Igreja] que teve grande repercussão”. Day, em 1960, compara Merton a um grande santo do século XIX: “Os seus escritos chegaram a muitas, muitas pessoas e lhes direcionaram no seu caminho. Esteja certo disso. Essa é a obra que Deus quer de você, não importa como você queira ficar longe dela. Assim como o Cura d`Ars”.
É muito sólido o laço entre os dois, um no retiro monástico da sua Abadia de Gethsemani, no Kentucky, a outra no turbilhão de marchas e de protestos na frenética Nova York do pós-guerra. Por exemplo, sobre a questão da guerra: “Não há nenhuma voz católica que seja ouvida no país, exceto Dorothy Day, do Catholic Worker. Mas quem a ouve?”, pergunta Merton a um amigo, em 1962. Para depois ressaltar, escrevendo à amiga (em 1961, plena Guerra Fria): “Por que esse vergonhoso silêncio e apatia por parte dos católicos, do clero, da hierarquia, dos leigos, sobre essa terrível questão da guerra nuclear, da qual depende a real continuação da raça humana?”.
Deve ser ressaltado, sobre a questão da bomba, o “minimalismo” de Day, que cita um místico medieval, “Sobre a estratégia da guerra nuclear: Juliana de Norwich dizia que o pior já aconteceu e foi reparado. Nada de mal jamais pode nos acontecer”. Em 1963, Day realiza, depois, uma peregrinação “pacifista” a Roma, por ocasião do Concílio, jejuando – com um grupo de ativistas – para que os padres do Vaticano II mantenham uma posição antimilitarista. Nessa ocasião, irá se encontrar com o cardeal Tisserant, ex-prefeito da Congregação para as Igrejas Orientais e eminente representante da Cúria. Mas também o pensador gandhiano Lanza del Vasto e o frei Roger de Taizé. Ela escreverá ao seu amigo Merton no dia 15 de novembro de 1965: “O Catholic Worker suportou o peso da guerra por 33 anos – protestando contra vários conflitos, o sino-japonês, a guerra na Etiópia, na Espanha, a Segunda Guerra Mundial, Coreia, Argélia, e agora esta: as bombas acidentais sobre vilarejos amigos [no Vietnã], o napalm sobre as nossas próprias tropas. É inevitável que os protestos aumentem”.
Lorenzo Fazzini, in Avvenire, 17-06-2011. Tradução: Moisés Sbardelotto. (http://www.ihu.unisinos.br/noticias/44493-dorothy-day-e-thomas-merton-cartas-sobre-a-bomba)