“O único sonho sério que pode ter um homem quando pega um pincel e o enche de tinta é de descobrir um novo indício capaz de o fazer seguir tendo vida própria e existindo por direito próprio, transcendendo toda a interpretação lógica.”[1] Essas palavras de Merton inserem-nos no universo de uma de suas facetas menos conhecidas, o Merton – artista sacro.
Thomas Merton é filho dos artistas Owen Merton e Ruth Jenkins, um neozelandês e uma americana que se encontraram num estúdio de pintores em Paris. Em fuga da Primeira Guerra Mundial encontraram abrigo em Prades, na França, onde Merton nasceu. Desde sua infância é dono de uma sensibilidade ímpar, a qual destaca na Montanha dos Sete Patamares[2]:
Afinal de contas, desde a minha infância, eu compreendia que a experiência artística, no seu auge, era de fato um análogo natural da experiência mística.[3] Produzia uma espécie de percepção intuitiva da realidade através de uma quase identificação afetiva com o objeto contemplado – identificação esta que os tomistas chamam “conatural”.
Havia aprendido de meu pai que era quase blasfêmia considerar como função da arte simplesmente reproduzir certa espécie de prazer sensual ou, melhor, despertar as emoções para uma excitação passageira. Sempre entendi que a arte era contemplação e que ela envolvia a ação das faculdades mais elevadas do ser humano.
Quanto a seus desenhos Merton sempre se referia a eles com a ironia que lhe é peculiar, para ele, seus desenhos não passam de “rabiscos”. Na nota Sugerencias sobre los dibujos, encontrada na obra Tropiezos celestiales, de Roger Lipsey, o próprio Merton descreve seus desenhos:
Estas criações abstratas – poderíamos denominá-las graffiti, mais que caligrafias – são simples signos e códigos de energia, atos ou movimentos que querem ser propícios. Seu “sentido” não há que ser buscado no nível convencional ou conceitual. Não são signos convencionais como as palavras, os números, os hieróglifos ou os símbolos. Não se lhes pode assinalar uma referência previamente acordada, porque sua natureza consiste em que hão aparecido sobre o papel sem prévio acordo. Pelo contrário, os únicos “acordos” que representam foram momentâneos e únicos, livres, não determinados e inconclusos. Vieram à luz quando vieram, na forma de reconciliações, como expressões de harmonias únicas e inconscientes, idôneas em seu momento, ainda não limitadas a ele. Mas não são um registro de uma experiência passada e pessoal, nem intentam indicar ludicamente o passo de uma classe especial de artista, como pegadas na neve. Não é importante saber se alguém passou por aqui, porque estes signos não se explicam suficientemente como registro de “acontecimentos”. Não obstante, ao vê-los pode abrir uma via a obscuras reconciliações e acordos que não são arbitrários – ou inclusive a novas e íntimas histórias.[4]
Quando olhamos os desenhos de Merton de imediato nos chama a atenção os rostos femininos. A presença feminina em sua vida foi marcante e parece que ao longo dos anos foi sendo depurada e transformada, sobretudo, quando desenha a Virgem Maria. À Mãe de Deus dedicou textos, trechos de seus diários, orações e desenhos. Quando jovem fez uma peregrinação a Nossa Senhora do Cobre em Cuba, recomendando-lhe sua vocação sacerdotal. Na obra Novas Semente de Contemplação dedica a ela o texto “Mulher vestida de sol” onde destaca toda sua devoção. Diz ele:
Na pessoa concreta, humana, que é a Virgem Mãe de Cristo, se encontram toda a pobreza e toda a sabedoria de todos os santos. Todos os santos receberam essa graça através de Maria e em Maria. A santidade dos santos é participação na santidade da Mãe de Jesus, pois na ordem por ele estabelecida, quer Deus que todas as graças concedidas aos homens cheguem a nós por Maria.”[5]
Os traços de Merton, nascidos de furtivos diálogos e longos silêncios, são marcados pôr delicadeza e sensibilidade, a precisão marcadamente notável inscreve em seus desenhos sua personalidade firme e decidida. A composição geral do desenho sugere um movimento que brota da própria capacidade da mãe de se “adequar” ao movimento e a necessidade real do filho. Na contemplação amorosa dos traços é perceptível a ternura que se irradia. Essa atitude de amor, brota do coração do próprio Deus, é derramada em Maria e é transmitida a todos que dela se tornam filhos espirituais.
Os desenhos de Merton trazem, igualmente, entre a leveza dos traços, e suas marcas peculiares, o vazio, elemento próprio de quem se aventura nos caminhos da experiência de fé e da busca incessante do rosto de Deus. Este vazio, no caso de Merton, reflete a grande influência do zen-budismo, em sua busca, além de refletir tendências da arte contemporânea no que tange ao esvaziamento estético e o “nada”, elemento presente na linguagem e na trajetória dos místicos de todos os tempos, e especialmente em Merton.
Por fim, a pessoa de Maria para Merton se reveste de uma presença tocante e de tamanha singeleza que somente as suas palavras, brotadas de seu coração orante, podem expressar com maior reverência algum sentido para além de qualquer compreensão.
Maria sempre Virgem, Mãe de Deus nosso Salvador, eu me entrego inteiramente à tua amorosa intercessão e cuidados, porque tu és minha Mãe e eu sou teu querido filho, cheio de problemas, conflitos, erros, confusão e com tendência para o pecado. Minha vida toda deve mudar, mas como não posso fazer nada para muda-la por conta própria, eu a entrego com todas as necessidades e preocupações para ti. Apresente-me de mãos puras para teu Filho Divino. Reza que eu possa aceitar de bom grado tudo que for preciso para despojar-me de mim mesmo e tornar-me Seu verdadeiro discípulo, esquecendo a mim mesmo e amando Seu Reino, Sua verdade e todos aqueles que Ele veio a salvar pela Sua Santa Cruz. Amém.[6]