A Paternidade Espiritual na Regra de São Bento
Dom Armand Veilleux, OCSO
A paternidade espiritual está presente de começo ao fim da Regra de São Bento. Para percebê-lo contudo, é necessário buscar a “paternidade espiritual” tal como era concebida no Novo Testamento e na tradição cenobítica primitiva, e não como algo que corresponda à noção moderna de “direção espiritual”.
Bento sublinha em absoluto primeiro lugar, a paternidade de Deus. Mostra, em seguida, como ela se exprime na vida da comunidade, em particular pelo exercício do serviço abacial, mas também através de todos os colaboradores do Abade e mesmo na obediência mútua que os monges são chamados a praticar.
Todo o Prólogo da Regra fala da paternidade de Deus. Bento pede ao discípulo de aceitar de bom grado os “conselhos de um pai afetuoso” (admonitionem pii patris) e afirma que sua Regra se dirige a quem quer que queira voltar, pelo labor da obediência ao pai, do qual se separara pela desídia da desobediência, a fim de que de pai afetuoso (pius pater) não venha ele a se transformar em pai irritado (iratus pater) e não venha a deserdá-lo. O Senhor, com efeito, como um pai amante, nos deseja ensinar o temor do Senhor (Venite, filii, audite me: timorem Domini docebo vos) e nos traçar o caminho da vida.
Logo após este Prólogo, vem o Capítulo 1, sobre as categorias de monge, no qual Bento define o que é um cenobita. É aquele que vive numa comunidade, sob uma regra e um abade. São três os elementos essenciais da vida cenobítica, e a ordem na qual são enumerados é fundamental. (Na história monástica assiste-se a uma decadência, ou ao menos, a um desvio do carisma, cada vez que esta ordem é modificada na prática). Acha-se esta mesma ordem na promessa que faz o noviço após ter-se-lhe lido a Regra. Deve ele prometer: a) stabilitas in communitate; b) conversatio (vida segundo a Regra); c) obedientia.
Não é senão após ter bem estabelecido este quadro geral que Bento fala do exercício da paternidade espiritual no seio da comunidade. E, seguramente, fala em primeiro lugar da missão que o abade tem de encarnar e de exercer a paternidade de Deus com relação aos seus irmãos. E é por isto que é chamado de “abbas”.
Que consequências tira Bento? Primeiramente, que o abade deve ensinar (esta é tradicionalmente a função por excelência do pai espiritual). Deve ensinar os mandamentos e os preceitos do Senhor por suas palavras e por seu exemplo e, evidentemente, nada ensinar que não seja conforme ao preceito do Senhor. Será, com efeito, responsável, no dia do Juízo, pela sua doutrina e pela obediência dos irmãos.
Deve encarnar o amor do Pai e do Cristo por todos, mostrando a todos os irmãos uma mesma afeição. Deve engendrar o Cristo neles, isto é, conduzi-los gradualmente a uma mais perfeita conformidade à imagem do Cristo, aí compreendida a repreensão, a exortação, e se necessário, corrigindo suas faltas.
Bento faz seguir imediatamente este capítulo sobre o abade por aquele sobre a convocação dos irmãos ao Conselho. E isto porque Deus exerce sua paternidade sobre a comunidade revelando a todos os irmãos, mesmo aos mais jovens, o que ele espera da comunidade. Ninguém no mosteiro, nem mesmo o abade, fará sua vontade própria, mas só a do Pai celeste.
Segue-se naturalmente o Capítulo 3 sobre a obediência, onde o monge é convidado a imitar o Cristo que não veio fazer sua vontade mas a do Pai que o enviou.
O Abade partilha com muitas pessoas o exercício de sua paternidade espiritual, quer através de uma responsabilidade explicitamente espiritual , ou mesmo através de uma tarefa material. De todos, Bento pede a capacidade de transmitir a doutrina, ou ao menos de dar uma boa palavra. Há primeiramente os decanos (c. 21) que são escolhidos “segundo o mérito de suas vidas e a sabedoria de sua doutrina” e os “simpectas” (c.27) para as situações difíceis, escolhidos também por sua sabedoria (“seniores sapientes“).
Esta paternidade se estende à ordem das coisas materiais. O abade partilha sua responsabilidade com o celeireiro, que não é simplesmente um administrador, mas alguém que toma parte no exercício da paternidade do abade. Deve, como diz Bento, ser como um pai para toda a comunidade (omni congregationi sicut pater) (c. 31). Assim também o enfermeiro (c. 36) que deve servir os irmãos como o Cristo.
Enfim há aquele que se chama hoje Mestre dos noviços, isto é, um ancião capaz de ganhar as almas, e que vela sobre os noviços com uma solicitude paternal (c.58). E além dele, há o prior, mas Bento parece ter tido dificuldades com os priores, e só fala sobre o tema para que se tenha presente o perigo da tensão entre o abade e o prior! (c. 65)
O quadro do exercício da paternidade espiritual na Regra não ficaria completo sem mencionar os dois belíssimos capítulos sobre a obediência mútua e sobre o bom zelo (c. 71 e c. 72) pelos quais os irmãos não somente se manifestam sentimentos fraternais, mas exercem uns para com os outros a paternidade de Deus.
Conclusão
Bento claramente se enraíza na grande tradição cenobítica.
Para ele, a paternidade espiritual, isto é, a expressão da paternidade de Deus, se exerce em comunidade através da própria vida comunitária, através da regra que atualiza para esta comunidade a vontade do Pai, como através da meditação do abade e de todos os que participam na tarefa do abade em todos os serviços da comunidade, seja de qualquer tipo (material ou espiritual).
O que existe da “direção espiritual”? – O monge deve primeiro confessar a Deus, todo dia, na oração, suas faltas passadas (c. 4,57). Deve também confessar a seu abade ou aos seus irmãos mais velhos (c. 7,44: c. 46,6) seus maus pensamentos e os pecados secretos de sua alma. Com relação ao seu abade, que ele deve amar com um afeto sincero (c. 72,10), deve ter um coração aberto. Mas nada indica que Bento tem em vista que exista entre os monges e seu abade uma comunicação constante de pensamentos como nos meios anacoréticos. Quando surgem dificuldades especiais, o abade deve intervir para aconselhar, corrigir, punir, etc. Deve se fazer ajudar pelos simpectes para os monges adultos nas situações mais difíceis, e de um ancião para os noviços, como de um celeireiro para as coisas materiais, de um enfermeiro para os doentes, etec. Mas essencialmente, sua paternidade espiritual se exerce através de seu ensinamento, que ele deve ministrar tanto pelo exemplo como pela palavra.
(Tradução: Cecília Fridman)
Dom Armand Veilleux, OCSO, é Abade do Mosteiro de Notre Dame de Scourmont (Belgica). A presente conferência foi proferida aos monges de sua comunidade em 29 de novembro de 1998