Blog › 23/06/2021

A oração e o discurso sobre Deus

Tudo o que não é eternidade reencontrada, é tempo perdido.” (Gustave Thibon)

 

Com o advento da internet e sobretudo das redes sociais, os apostolados virtuais se multiplicaram. Apostolado é a ação dos batizados no mundo. São Josemaria Escrivá diz que o apostolado é a própria vida do cristão, que seu modo de viver “denuncia” quem ele é: um filho de Deus. Ou seja, o testemunho de uma vida de acordo com o que recebeu no batismo. O apostolado também pode ser um serviço de evangelização, catequese e até de reflexão teológica que os fiéis se prestam a realizar. As redes sociais potencializaram, em termos numéricos, este tipo de apostolado.

Tem muita gente falando de Deus. Mas eu me pergunto: tem muita gente falando com Deus? Dom Jean-Baptiste Chautard, em um livro (“A alma de todo apostolado”) muito caro a Thomas Merton, debruçou-se demorada e profundamente sobre esse tema. O discurso sobre Deus precisa convergir com a oração.

Sabe-se que o verdadeiro amor gera frutos e boas obras, mas essas boas obras só nascem de um diálogo profundo e amigável com Deus.” (“A alma de todo apostolado”, Dom Jean-Baptiste Chautard)

 

Um dos livros bíblicos que mostram claramente essa relação (discurso sobre Deus X oração) é o livro de Jó. O livro conta a história de um homem íntegro que cai em desgraça, perdendo todos os seus bens e seus filhos. Nós ficamos sabendo da explicação no prólogo: Satanás vai diante de Deus e pede autorização para tentar Jó com o sofrimento, pois assim este amaldiçoaria o Criador. Deus dá a permissão e Jó mantém sua integridade.

Os amigos de Jó, que deviam se achar excelentes mestres e teólogos, tentavam buscar explicação para a situação do amigo em discursos cada vez mais equivocados sobre Deus e sua providência. Em vez de levar conforto a Jó, os amigos colocaram-no na condição de culpado, junto com a conduta de seus filhos. Pregaram uma imagem do Deus vingativo, e quanto mais Jó os respondia com sabedoria, mais eles recrudesciam as acusações. Mas Jó sabia que a causa das desgraças não era seu pecado e nem o de sua família. Jó tinha o princípio da sabedoria: o temor de Deus. Qual a diferença entre Jó e seus amigos? Os amigos de Jó falam “de Deus”; Jó fala “com Deus”. Eis a diferença. Os amigos de Jó falharam miseravelmente ao tentar explicar o sofrimento do companheiro e Jó termina seus dias carregando em sua história uma das mais belas experiências de Deus do mundo bíblico: “Meus ouvidos ouviram falar de ti, mas agora meus próprios olhos te viram.” (Jo 42,5). E, sendo amigo de Deus, com um coração generoso, reza por seus amigos que tanto lhe perturbaram (e recebe a bênção do Senhor):

Enquanto Jó rezava por seus amigos, o Senhor o restabeleceu de novo em seu primeiro estado e lhe tornou em dobro tudo quanto tinha possuído.” (Jo 42,10)

 

Santa Teresinha

Evágrio Pôntico, um daqueles maravilhosos monges-escritores dos primeiros séculos do cristianismo, tem uma frase lapidar que também nos ajuda a refletir sobre o tema: “É teólogo aquele que reza. Aquele que reza é teólogo”. É interessante: nem todo aquele que discursa sobre Deus é teólogo, mas todo o que reza é teólogo, ainda que não fale sobre Deus e não seja um teólogo público. Obviamente, Evágrio está falando aqui do homem que reza de verdade, aquele que é experimentado na oração. Esse homem é teólogo. Santa Teresinha do Menino Jesus, que nunca desejou ser uma pensadora da fé, e passou seus curtos nove anos de consagrada no mosteiro de Lisieux praticamente rezando, vivendo o dia a dia comum de uma monja carmelita e oferecendo sua vida a Deus, jamais pensaria em ser chamada por ninguém de “teóloga”. Aliás, ela não foi teóloga de fato e tudo o que escreveu foi por estrita obediência aos superiores. Mas fez teologia. E alta teologia. Que o digam os grandes teólogos e Papas que se debruçaram sobre seus escritos e sua vida e descobriam verdadeiros tesouros teológicos. Hans Von Balthasar, uma das maiores mentes teológicas do século passado, disse que Teresinha realizou uma “transfusão de sangue na teologia”. São João Paulo II, que a proclamou Doutora da Igreja, chamou-a de “Doutora da Ciência do Amor”, e deixou trechos belíssimos sobre a relação em vida contemplativa e teologia em Santa Teresinha:

Com a sua vida, Teresa oferece um testemunho e uma ilustração teológica da beleza da vida contemplativa, como total dedicação a Cristo, Esposo da Igreja, e como afirmação viva da primazia de Deus sobre todas as coisas. A sua é uma vida escondida, que possui uma arcana fecundidade para a dilatação do Evangelho e impregna a Igreja e o mundo com o bom odor de Cristo

(…)

Teresa oferece uma síntese amadurecida da espiritualidade cristã: une a teologia e a vida espiritual, exprime-se com vigor e autoridade, com grande capacidade de persuasão e de comunicação, como demonstram o acolhimento e a difusão da sua mensagem no Povo de Deus.” ( Carta Apostólica «Divini Amoris Scientia”, São João Paulo II)

 

Von Balthasar e a teologia de joelhos

Hans Urs von Balthasar cunhou a expressão “teologia de joelhos”. Para ele, a teologia só podia ser autêntica quando se conjugasse com a contemplação. Von Balthasar identificou essa teologia orante sobretudo nos Padres da Igreja:

Quem ousaria objetar sobre algum dos Padres?

Então sabia-se o que era o estilo teológico, a unidade natural, óbvia, tanto entre atitude de fé e ciência quanto entre a objetividade e a reverência. A teologia enquanto foi obra de santos, permaneceu teologia orante. Por isso a sua expressão em oração, a sua fecundidade pela oração e o seu poder de a gerar foram assim incomensuravelmente grandes” (Verbum Caro, Ensaios teológicos I Bréscia 1970, 228).

Von Balthasar compreendia essa “teologia de joelhos” como aquela que transborda de um coração enamorado de Cristo. Só o homem em processo de conversão, que parte da pessoalidade de Cristo pode fazer autêntica teologia cristã. A teologia mergulhada na contemplação gera um discurso que tem a Verdade como fundamento. Tanto São João Paulo II quanto Bento XVI têm Von Balthasar em alta conta e são adeptos de sua teologia de joelhos (conta-se que os organizadores dos eventos internacionais de João Paulo II tinham que esconder as capelas porque ele perdia muito tempo nelas e desorganizava os cronogramas). Os escritos de João Paulo II, sobretudo os de caráter cristológico, deixam entrever essa mística muito marcante.

Já Bento XVI, também um orante, que deixa o Trono de Pedro para viver como um monge, dirá sobre esse modo de teologizar:

Uma teologia que deixa de respirar a atmosfera da fé deixa de ser teologia; acaba reduzindo-se a uma série de disciplinas mais ou menos ligadas entre si. Onde, pelo contrário, se pratica uma ‘teologia de joelhos’, como dizia Hans Urs von Balthasar, não faltará fecundidade para a Igreja.

Também Francisco fala desta “teologia de joelhos”, desta vez falando sobre o próprio Bento XVI:

Antes mesmo de ser um grandíssimo teólogo e mestre da fé, vê-se que é um homem que realmente acredita, que realmente reza; vê-se que é um homem que personifica a santidade, um homem de paz, um homem de Deus. Cada vez que leio as obras de Joseph Ratzinger — Bento XVI, fica sempre mais claro que ele fez e faz ‘teologia de joelhos’”.

O discurso sobre Deus não anda separado da vida contemplativa. A vida ativa, o apostolado, são consequências de uma vida de mística contemplativa. Como tão bem testemunhou Thomas Merton, não há uma dicotomia entre o claustro e o mundo. A oração e o compromisso evangélico no mundo estão unidos. Separá-los é tornar a ação estéril e a oração uma embriaguez alienante e infecunda.

Quem ora, arde de compaixão pelo mundo; quem age no mundo, se consome de amor por Deus.

Sergio de Souza nasceu em Cantagalo, interior do Rio de Janeiro, de onde jamais saiu. É casado e pai de quatro filhos (um no céu). Desde cedo interessou-se por arte, cultura e religião. Conheceu os livros de Thomas Merton, que lhe mostraram que o cristianismo está muito além da sacristia: na cultura, nas artes e, sobretudo, no coração de cada homem. Publica textos na internet desde 2005. É criador do apostolado virtual O Camponês (site e fanpage no Facebook).

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