1. Na cozinha de nosso mosteiro, assim como eu imagino na de vocês, há uma caixa em cima do balcão com saquinhos de chá mate. E lê-se no rótulo: “Use e abuse”. Isto somente para indicar que mesmo as melhores coisas podem nos trazer problemas, fato este já conhecido nos tempos de Aristóteles que afirmava: “Corruptio optimi pessima”.
2. No livro de Thomas Merton “A Oração Contemplativa”, um de seus últimos trabalhos, ele trata dos “use” e “abuse” de uma das mais preciosas de todas as realidades: a vida espiritual, e mais particularmente, a oração. Por ela ser tão preciosa como um modo de nos unir a Deus e porquê seu abuso é potencialmente tão desastroso, como um modo de nos separar de Deus, Merton se dirige a seu público – tanto monges como leigos – com a combinação de zelo profético e intuição poética característica de seus melhores escritos.
3. Ele se baseia grandemente em suas citações de são João da Cruz, como ele faz frequentemente, mas também faz numerosas referências à tradição mística do séc. XIV, tanto da Renânia (Tauler, Ruysbroeck) quanto da Inglaterra (Walter Hilton).
4. O que seria precisamente o abuso da vida espiritual? Reflexões sobre este tema nos círculos monásticos cristãos tiveram início já com Cassiano, no séc. V. No último livro de suas Instituições, Cassiano aborda a “paixão” do orgulho espiritual. Ela é – afirma ele – a principal e a raiz de todas as paixões/ vícios, mas ela só é percebida claramente uma vez que o homem espiritual tenha travado batalha com bom êxito contra todos os outros vícios.
5. Orgulho espiritual, diz Cassiano, é a perversão da realidade espiritual por fins egoístas. Há em todos nós, seres humanos, um profundo desejo de instrumentalizar tudo – até mesmo Deus – a fim de glorificarmos a nós mesmos, a fim de afirmar nossa importância última. Desejamos instrumentalizar a Deus em nossas buscas espirituais, possuí-Lo, a fim de que possamos ser – ser eternos, ser independentes, não mais ser criaturas contingentes, mas como seres auto evidentes, necessários.
6. Talvez pareça estranho e até mesmo incrível que o monge – obediente, silencioso, humilde – possa estar nutrindo estes desejos luciferianos em seu coração, mas eles estão, de acordo com a tradição monástica (desde Cassiano até Merton) no centro penúltimo de cada pessoa. Penúltimo porquê a única realidade mais profunda no coração humano é o próprio Deus.
7. A maioria das pessoas não experimentará o orgulho espiritual conscientemente, ao menos não com plena força. Elas o experimentarão em sua forma oculta de “orgulho carnal” – como individualismo, falta de cooperatividade, ambição – e talvez elas não se deem conta sequer disto. Mas se elas decidirem se lançar na batalha espiritual e se perseverarem nela, elas chegarão a esta última e pior batalha antes da puritas cordis – a batalha contra a tentação de sujeitar a Deus aos seus próprios propósitos.
8. Na própria tradição cisterciense de Merton, este orgulho espiritual é descrito como um desejo de ingerir a Deus através do conhecimento – fazer de Deus o objeto final, mais fascinante e deleitável de nossa quase infinita capacidade de compreender a verdade. Evidentemente, o problema não é o desejo de conhecer a Deus (que o próprio Deus coloca no coração e na mente humana), mas o desejo de governá-Lo – tê-Lo, controlá-Lo – através do conhecimento. Este modo medieval de descrever o orgulho espiritual iria assumir sua forma mais dramática na história de Fausto – o desejo de vender a própria alma a fim de conhecer tudo, de conhecer o Tudo. Para os cistercienses, o atrativo, o risco e a punição de tal orgulho estavam todos expressos no versículo muitas vezes citados dos Provérbios: “Scrutator maiestatis opprimatur a gloria” (“Aquele que busca penetrar os segredos da divina majestade será esmagado pela glória divina”).
9. Aonde entra Merton em tudo isto? Como um descendente de toda a tradição monástica ocidental, obviamente, mas também como um herdeiro do existencialismo cristão (Kierkegaard, Marcel). Merton descreve a situação espiritual do homem interior como uma de temor (“dread”). Temor, para Merton, é uma realidade multifacetada. É, antes de tudo, nossa criaturidade e contingência, o fato de virmos “de Deus”. Isto, obviamente, não é em si mesmo pecaminoso ou terrível – teoricamente deveria ser maravilhoso e regozijante. Mas o homem colocou no cimo de sua criaturidade uma recusa de sua criaturidade, um desejo tenaz de afirmar-se como livre de Deus (tanto ontologicamente quanto em termos de obrigação moral, ambos perfazendo aquilo que Merton se refere como sendo a obedientia fidei). Como esta recusa é uma mentira, a situação é de um contínuo desconforto, para dizer em termos leves (cf. o solilóquio de Lúcifer no primeiro livro de “Paradise Lost”). Na tentativa de solucionar este desconforto, o homem, ao invés de se arrepender e converter-se, cria toda uma cultura e mitologia para proclamar sua autocriada realidade inveraz. Ele vive – diz Merton – em contínua inautenticidade, recusando-se em devolver a Deus e aos outros, em amor e serviço, a superabundância que ele recebeu ao ser criado. Toda esta falta de integridade, toda esta construção de sua existência interior na inverdade, produz o estado de temor; uma mistura de teimosia, náusea, sentido de perda, medo e mágoa.
10. Aqui vem a parte mais estranha, diz Merton. O homem espiritual moderno – seja ele monge ou leigo, cristão ou não-cristão – ao invés de usar proeza ascética ou conhecimento intelectual como a base para seu orgulho espiritual, tende a usar a oração para este fim. Oração, que por sua natureza é uma total auto entrega nas mãos de Deus, pode ser a arma mais potente no arsenal que empregamos para rechaçar a Deus e persistir em nossa inautenticidade. A oração pode ser desenvolvida, ano após ano, década após década, como um modo de engrossar a casca de nosso individualismo até que finalmente nos tornamos quase inteiramente inacessíveis a Deus. A oração pode ser a mais potente arma a nos manter a salvo da vivência da realidade.
11. Para Merton, monge trapista por quase três décadas, tal auto ilusão era um perigo profissional. Aqueles que estão familiarizados com suas cartas e diários sabem como ele sofreu encontrando este tipo de artificialidade espiritual (ele adorava usar a gíria “bogus” para descrevê-la) em sua própria comunidade monástica e sofreu ainda mais ao ver esta tendência em si mesmo. Por esta razão, Merton, como muitos autores espirituais, fala do risco da vida contemplativa “oficial”. Muito mais segura a vida de tarefas simples e oração no contexto de família, trabalho, vizinhança; muito menor, no contexto das pressões das responsabilidades interpessoais no “mundo real”, a tentação de construir e decorar-se como um santo monge, um santo esperando com segurança a data de sua ascensão à glória.
12. Não devemos rezar, então? Para Merton, vida sem oração é impensável, mas a fim de rezar genuinamente, nossa noção de oração e o nosso modo de rezar em si deve ser virado do avesso, assim como estes, por sua vez, devem nos virar do avesso, tornar-nos radicalmente diferentes e alterocentrados. Devemos vir a compreender que oração genuína não diz respeito a amar e conhecer a Deus (nós muito facilmente transformamos isto numa tentativa de dominá-Lo), nem a capturá-Lo como um objeto, ainda que como o supremo Objeto, mas diz antes respeito a experimentar a si mesmo e experimentar a si mesmo como se é realmente – como criado, sustentado, conhecido e amado por Deus. O caminho da experiência contemplativa de Deus, diz Merton provocativamente, se dá através da jornada da experiência cada vez mais profunda e autêntica de nós mesmos – àquele centro aonde nós descobrimos a nós mesmos como apoiados por Ele. Nós jamais O alcançaremos, exceto se permitirmos que Seu conhecimento acerca de nós se torne o nosso conhecimento acerca de nós mesmos.
13. Se a oração é uma jornada ao centro do coração e ao Deus que lá habita, nós podemos esperar que a jornada seja dura. Como já foi dito, nós fugimos com toda a intensidade de nosso medo e rebelião do nosso centro de dependência criada que nós experimentamos como desgraça e miséria. E de fato, em grande parte, o que há em nós é desgraça e miséria, não porque Deus assim nos criou, mas porque falsificamos o nosso ser. Quanto a isto, a oração será um verdadeiro purgatório no qual passo a passo nós precisaremos deixar que o conhecimento e o amor de Deus, na medida em que eles tomam conta de nós, desfaçam as múltiplas e enodadas mentiras que havíamos tramado. Como Mestre Eckhart diz: “Uma vez que nos damos conta que tomamos uma direção errada e afastamo-nos da estrada, a volta à estrada certa será tão longa quanto o desvio feito”.
14. Como devemos rezar? Merton constantemente fala neste texto da oração como meditatio: a repetição interior de um versículo das Escrituras que é ao mesmo tempo a expressão de nossa verdadeira condição espiritual e um chamado à libertação. Como sabemos, na tradição cristã oriental, o versículo mais comumente usado é aquele que chamamos de “a oração de Jesus”: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tende pena de mim, pecador”, enquanto que no Ocidente, a invocação vem do Salmo 69 (como foi transmitida pela tradição do deserto e por Cassiano): “Ó Deus, vinde em meu auxílio”. Um tal versículo deve tornar-se a própria vida de alguém – ele se torna uma única coisa com a realidade de minha identidade. Eu reconheço a mim mesmo radical e continuamente como aquele que necessita o auxílio de Deus, como o pecador à beira da estrada à espera da passagem do Senhor Jesus Cristo e de sua misericórdia. Este processo de compenetração entre o texto das Escrituras e a pessoa do orante é a “oração do coração” e o anseio de uma tal pessoa é que a oração em questão “desça da mente até o coração”, tome posse da pessoa, a fim de que a pessoa se torne aquela oração.
15. Deus nos livre, diz Merton, que uma tal oração se transforme num “hobby”, ou em algo chique, ou simplesmente numa maneira de alguém acalmar as próprias emoções perturbadas. Lidar com a oração deste modo seria análogo a uma recepção profana da Eucaristia (a comparação é minha, não de Merton). A imensa alegria, paz e paciência experimentadas pelo peregrino russo no texto bem conhecido do século XIX não vêm como resultado do aperfeiçoamento de sua técnica (Merton tem algumas palavras muito ríspidas a dizer a este respeito), mas porque o Senhor vivo Jesus Cristo penetrou no coração do peregrino através da prática perseverante da oração e o peregrino se regozija imensamente nesta inabitação. Assim, uma tal jaculatória, ao invés de ter seu valor em seu efeito calmante ou em sua capacidade de nos “preparar” para a contemplação, é a expressão linguística da verdade de nosso ser: nossa necessidade de Deus, nosso desejo de Deus e de Sua vinda misericordiosa.
16. Toda oração, de acordo com Merton, deveria ser, neste sentido, meditatio. Que utilidade, diz ele, tem a salmodia, toda a grande construção que nós conhecemos como Opus Dei, senão ser uma meditação atenta da Palavra de Deus, sendo penetrados por ela, uma compunctio? Aqui, mais uma vez, se a oração não for a honesta busca angustiante (ou o alegre encontro) de Deus e de Sua misericórdia, ela será um sedativo, uma maneira esteticamente agradável de preencher as longas horas de lazer no dia monástico. Ele aponta para a tradição do deserto, onde o Saltério, acima de todos os outros livros da Bíblia, era aquele que dava expressão aos medos e combates mais profundos do monge e oferecia a ele um vocabulário através do qual ele podia vocalizar sua fome e sede do Deus vivo.
17. Conforme continuamos em oração, é natural que ela se torne mais simples, mais obscura, com menos qualidades (Eigenschaften). Todos nós estamos familiarizados com vários termos para este período da experiência – deserto, noite, vazio, nada. Estes termos buscam refletir um número de realidades interconexas, diz Merton. Primeiramente, uma maior aceitação experimental da pobreza de nosso ser. Em segundo lugar, o silencioso porém ininterrupto trabalho de Deus na oração, purificando-nos cada vez mais e mais daquela resistência essencial a Ele e à Sua graça (impossível superestimar como, em última análise, a oração é mais a atividade de Deus do que nossa). Em terceiro lugar, a simplificação de nossa complexidade. Na noite da oração, aprendemos a não pedir nada em particular a Deus, porque chegamos a intuir que Deus não é algo em particular. É a maneira do espírito imperfeito, diz João da Cruz, de buscar na oração paz, conhecimento, consolação, luz. Nenhuma destas coisas são Deus, mas somente as consequências de Sua graça e quando as buscamos, podemos saber que estamos mais uma vez recaindo temporariamente em orgulho espiritual. O contemplativo, por desejar somente a Deus, não buscará nada destas coisas. De fato, diz Merton, a genuína oração contemplativa pode ser definida como uma “preferência pelo deserto”, o “desejo de não saber mais do que o de saber”. Então a oração se torna (ainda que sofridamente) mais e mais semelhante a Deus: sua falta de imagens, conceitos ou sentimentos, embora dolorosa para nós, nos traz mais próximos ao Deus verdadeiro, transcendente.
18. Em toda grande tradição contemplativa, chega finalmente (realmente no final) o feliz choque. O trabalho divino de purificação está essencialmente feito, a resistência foi ultrapassada e Deus faz por nós, à nossa vista, o que Ele sempre tem feito – ama-nos, salva-nos, vive em nós, age em nós. Na Regra de são Bento, à qual Merton se refere neste contexto, há o salto do décimo segundo grau da humildade, onde o monge, todo curvado pelo conhecimento de sua pequenez, é de repente exaltado a um êxtase produtivo-silencioso-estável dentro da caridade de Deus. Em João da Cruz (São Bento, perdoe a minha traição!), a realidade é descrita de modo ainda mais belo: a alma experimenta em seu próprio centro o banquete da Santíssima Trindade – as três Pessoas Divinas, fonte transcendente e fim de toda a realidade, são descobertas dentro de si, vivendo sua vida eterna de ser, conhecimento e amor e superabundantemente comunicando esta vida à pessoa. Somente a pessoa que passa através do abismo do “eu” conhecerá isto experimentalmente, a pessoa que toma com absoluta seriedade o mistério pascal: que a existência cristã é morte ao velho homem em suas ilusões e desejos e renascimento no Cristo Ressuscitado, na filiação divina. Esta compreensão da total importância da centralidade do mistério pascal é a única justificativa da oração.
19. Poderíamos, com Merton, afirmar que é aqui que a vida humana realmente começa, vida “impávida”. Agora em contato com as águas vivas da vida de Deus, a pessoa de oração possui interiormente o que Merton chama uma “participação na caridade universal de Deus”. Agora se torna possível – natural – para ele viver de acordo com o Sermão da Montanha, perfeitamente como seu Pai celeste é perfeito, perfeito no sentido que seu amor flui para todos os seres humanos, para todos os seres sensíveis. Tal pessoa experimenta agora que este amor evangélico, se ele pudesse porventura ser descrito como um dever, era um dever impossível antes que a morte e ressurreição de Cristo se realizassem em sua vida, em sua oração. Como poderia o homem que se definiu em oposição e contradição a Deus, que rejeitou sua identidade de criatura, sempre sentir brotando de dentro de si o amor indistinto do próximo (observe mais uma vez a ausência de limites particulares)? É somente agora que a vida divina flui desimpedida em sua consciência e liberdade de que ele é capaz de amar a todos, abraçar a todos, no poder do Espírito Santo. Aonde este amor ativo – ativo ao servir em qualquer vocação que Deus nos tenha colocado – não é um desejo fundamental, que gradualmente se transforma em toda a nossa orientação, a oração – diz Merton – é deveras um ópio.
20. Nós encontramos neste livro da maturidade de Merton a constelação de seus temas centrais: oração e identidade existencial, oração e ação, oração e maturidade espiritual, oração e amor universal, oração e o encontro com o fundamento do ser. Ao invés de aparecer disparatado em algum modo, estes temas estão vitalmente unidos, todos expressando o desejo ardente de Merton de ser “virado do avesso” pelo Deus vivo. Embora quase não haja referências a autores não-cristãos e muito poucas a escritores protestantes (Jacob Boehme), o livro é ecumênico naquilo em que se ocupa predominantemente: como, através da oração, a humanidade teimosa e de cabeça dura pode tocar, no sentido mais profundo da palavra, o Deus Infinito que está sempre ocupado em amá-la e salvá-la. Por este motivo, não é de se surpreender que o prefácio do livro foi escrito por um budista e a introdução, por um Quaker.