Blog › 23/05/2017

A grande compaixão

A entrevista de Norma Ribeiro Nasser Salomão concedida a IHU On-Line, em 16/12/2014, esclarece dúvidas e contradições do místico cisterciense que buscou, também no orientalismo, uma via para encontrar Deus.

“O olhar de Thomas Merton desde sempre foi sensibilizado pela vida cotidiana, a sua via mística foi realizada através da comunhão com a natureza. O seu contato com o Zen apenas alargou esta perspectiva já existente em seu interior.”

Fascinado pelo orientalismo desde a vida pré-monástica, é do contato com mestres e seguidores desta filosofia que ele se inspira para vivenciar esta espiritualidade oriental. Merton aspirou ao Oriente durante muitos anos, esperando encontrar “no retorno para casa o encontro consigo mesmo que, em última análise, representava o grande salto em direção ao seu próprio abismo interior”. Como defende a professora, Thomas foi um buscador do diálogo, de si mesmo e de Deus. “As suas palavras algumas vezes eram semelhantes às de um oriental, mas em seu peito ele trazia o crucifixo, e o seu breviário em seu pensamento.”

 

Enquanto padre católico, como se deu a aproximação de Thomas Merton  com o Zen-budismo?

A aproximação de Merton com o Zen-budismo ocorreu em três momentos: o período pré-monástico, o período monástico e o período asiático. O interesse de Merton pelo Budismo iniciou-se no período pré-monástico, quando ele ainda era um jovem estudante de Oakham School, na Inglaterra (1928-1932). Em 1937, durante seus estudos na Universidade de Columbia, em Nova York, ele leu Fins e meios, de Aldous Huxley , que o levou a buscar livros sobre a mística oriental na biblioteca da Universidade. Leu inclusive os quatro grandes volumes do padre jesuíta Wieger , que eram textos orientais traduzidos para o inglês. Até que encontrou o monge hindu Brahmachari , que o induziu a ler os livros escritos por místicos cristãos, como As Confissões de Santo Agostinho e A imitação de Cristo.

A segunda aproximação, voltada para o Zen-budismo especificamente, ocorreu no período monástico. Após oito anos de total dedicação ao Cristianismo, Merton tem conhecimento da obra de Daisetsu Teitaro Suzuki , considerado por muitos autores como o grande responsável pela divulgação do Zen no Ocidente. Este mestre japonês, autor de vários livros sobre o Zen, foi de grande importância neste contato. Trocaram correspondências de 1959 até 1965 e tiveram um único encontro pessoal que marcou profundamente o trapista pela força de sua presença.

O terceiro momento de aproximação com o Zen e com o Budismo de maneira geral, especialmente o Tibetano, ocorreu no período asiático, quando Merton partiu para o Oriente em busca de novos conhecimentos e vivências. Em seus estudos sobre o Zen, Merton enfrentou vários desafios. Arriscou-se no diálogo inter-religioso pelo viés da experiência na qual qualquer comparação entre uma religião e outra parece, a princípio, absurda. Como elucidou, não é possível compreender o Zen nos parâmetros de uma reflexão teológica ou filosófica ocidental. Como cristão, ele procurou vivenciar esta espiritualidade oriental, não se contentando com o conhecimento intelectual. Escreveu dois importantes livros sobre o tema: Místicos e Mestres Zen (São Paulo: Martins Fontes, 2006 [1961]) e Zen e as aves de rapina (São Paulo: Cultrix, 2000 [1968]). Entretanto, encontramos também muito material budista nos sete volumes de seus diários e em vários de seus poemas.

 

Que nexos aproximam esses dois credos e como se deu essa simbiose em sua vida e mística?

Em primeiro lugar tanto o Zen-budismo quanto o Cristianismo apresentam propostas de libertação para o ser humano. Estas colocam na superação do desejo egocêntrico que está relacionado ao apego a realização de uma experiência nova e libertadora do sofrimento. Diferente em se posicionar a respeito de Deus, o Zen não afirma nem nega sua existência, apenas cala-se quanto a ela. Esse silêncio não é sinônimo de ateísmo ou falta de religiosidade, mas antes disso este “Deus budista” aparece de uma forma alusiva aos olhos de quem tem a visão ampliada e capaz de captar esta “presença” na simplicidade. O olhar de Thomas Merton desde sempre foi sensibilizado pela vida cotidiana, a sua via mística foi realizada através da comunhão com a natureza. O seu contato com o Zen apenas alargou esta perspectiva já existente em seu interior. Esta espiritualidade oriental também está profundamente imbuída do sentido de religiosidade da natureza, não como uma visão romântica, mas em seu aspecto concreto e real. No Zen, assim como em Merton, natureza/despertar são inseparáveis, estas palavras de seu diário mostram o quanto ela [a natureza] era para ele a própria presença divina: “[…] aqui em cima, nas matas, vê-se o Novo Testamento: quer dizer, o vento vem por entre as árvores e você o respira.” O monge não praticou o Zen em seu sentido tradicional ou monástico, mas o viveu à sua maneira por sua própria experiência de contemplação.

 

A viagem de Merton ao subcontinente asiático e ao sudoeste da Ásia, durante a qual ele descreveu uma experiência mística em frente a uma estátua de Buda no Ceilão (agora Sri Lanka), deixou alguns católicos escandalizados e ajudou a aumentar o rumor de que ele planejava deixar o monastério ou a igreja. Por outro lado, seu posicionamento religioso pode ser interpretado a partir do diálogo inter-religioso? Por quê?

Thomas Merton partiu em sua peregrinação ao continente asiático em busca de novos conhecimentos e principalmente com o objetivo de compartilhar experiências com os monges orientais. Entretanto, para escândalo de alguns católicos, ouso dizer que ele foi além do diálogo inter-religioso ao viver a experiência mística na Gruta de Gal Vihara, ao se deparar com as três monumentais estátuas dos Budas esculpidas na pedra por homens santos. Apesar de ser uma vivência um tanto paradoxal para um católico trapista, nada indica que ele tivesse intenção de deixar o mosteiro ou a igreja; ele foi um cristão até o final de sua vida. Através da sensibilidade de místico, sua visão foi definitivamente tocada pela espiritualidade budista, a sua percepção foi dilatada no instante de sua visita a este sítio sagrado da Ásia, que ele chamou de “jardim zen”. Esta experiência vivida uma semana antes de sua morte foi considerada por ele indescritível em sua amplitude, mas foi narrada ricamente em seu Diário da Ásia (Belo Horizonte: Editora Vega, 1978 [1968]).

 

Qual foi o impacto de seu encontro com o Dalai Lama?

A presença do líder espiritual do Tibete Dalai Lama , na ocasião um jovem alto e forte de 33 anos, provocou grande impacto em Thomas Merton. Eles reuniram-se três vezes na região montanhosa de McLeod Ganji, um subúrbio de Dharamsala, na Índia, onde o governo tibetano no exílio tem sua sede. Os encontros foram longos e proporcionaram uma experiência rica e fraterna na qual debateram sobre diversos temas. O primeiro realizou-se no dia 4 de novembro de 1968, onde conversaram sobre religião, filosofia e meditação, e Dalai Lama o aconselhou a estudar a filosofia Madhyamaka  de Nagarjuna e a consultar mestres tibetanos qualificados para unir o estudo à prática.

A segunda audiência com o Dalai Lama foi dia 6 de novembro de 1968, onde conversaram sobre epistemologia, meditação e samadhi . A terceira audiência foi considerada por Merton, sob certos aspectos, a melhor delas; trocaram ideias sobre monasticismo e política, conversaram sobre o funcionamento da mente, prajna , sunyata . Enfim, tornaram-se amigos, Merton declarou que seus reais interesses eram monásticos e místicos. Esta impressão bastante positiva levou Merton a voltar sua atenção, a princípio focada no Budismo Mahayana, especialmente o Zen, em direção ao Budismo Tibetano.

 

Sua oração mais famosa começa com “Meu Senhor Deus, eu não tenho nem ideia para onde estou indo”. Como sua humanidade, suas dúvidas, mas suas buscas de sentido constante perpassam sua trajetória mística?

Justamente no âmago de seu próprio paradoxo e na simplicidade da vida no mosteiro, com todos os seus conflitos é que Thomas Merton viveu a experiência de Deus. Nesta oração vemos o signo de um buscador imerso na imanência da vida, um místico contemplativo e ao mesmo tempo totalmente implicado na ação social. Merton viveu com profundidade a sua própria humanidade, até mesmo o amor intenso e conflituoso que se permitiu viver três anos antes de sua morte com a enfermeira M.  o fez retomar a sua verdadeira vocação de religioso.

O seu coração já estava possuído pela centelha divina, como ele afirmou em seu diário “[…] me casei com o silêncio da floresta…”, a sua estreita ligação com a natureza revelava aspectos intrinsicamente relacionados com sua trajetória mística. Esta para o monge estava indubitavelmente em conexão com o despertar de sua espiritualidade. Nesta oração, Merton diz não ter ideia para onde estava indo, mas ele seguiu em sua via de maneira inquestionável, sentia-se chamado pela voz de Deus, que segundo ele era um convite a abandonar-se até de si mesmo. Na intimidade desta convivência ele sabia o que buscava e o quanto isso era inacessível a qualquer palavra ou discurso.

Quais são as principais interpelações de Merton aos seus leitores contemporâneos?

Thomas Merton nos deixou um imenso legado, sua obra de grande riqueza tem sido incansavelmente estudada e fonte de direção espiritual tanto para os religiosos quanto para o leitor comum que busca um sentido mais profundo para a vida.  Como escritor e no exemplo de sua trajetória, vemos um homem muitas vezes com conflitos e contradições, mas que viveu a experiência direta de Deus no contato com as coisas mais simples da vida cotidiana. Merton foi um homem que soube unir a contemplação com a ação. Mesmo com toda a censura sofrida pela própria Ordem Cisterciense, ele pregou a favor da paz, contra o racismo, combateu a Guerra Fria e as injustiças sociais, mas também não deixou de viver seu amor pela natureza no Mosteiro de Getshemani. Este também foi um grande legado — a sua visão não antropocêntrica do mundo, a natureza da qual ele se sentia parte. Merton tinha uma visão não dualista, via nas montanhas, nos animais, na exuberância das matas, enfim, em toda a criação, a voz e os ensinamentos divinos. Mas que infelizmente 46 anos após sua morte o ser humano ainda não compreendeu que a separação entre nós e a natureza é ilusória. E a consequência desse equívoco é desastrosa, o ser humano destrói a sua própria casa.

 

“Eu estou indo para casa, onde eu nunca estive com este corpo, neste traje lavável”, escreveu Merton quando ia de São Francisco ao Oriente, para de lá só voltar morto. Em que sentido essa viagem representava muito mais do que um destino, mas uma escolha, um encontro com seu próprio interior?

Thomas Merton afirmou em setembro de 1968 na Carta Circular aos Amigos que a verdadeira viagem na vida era interior: “[…] uma questão de crescimento, aprofundamento e entrega sempre maior à ação criadora do amor e da graça em nossos corações”. O monge viveu por muitos anos a expectativa desse encontro com o Oriente, um lugar tantas vezes visitado por ele em sua imaginação e vontade até que finalmente ele conseguiu realizar em sua peregrinação asiática. Merton disse que buscava encontrar mahakaruna, a grande compaixão. O retorno para casa simbolizava o encontro consigo mesmo que, em última análise, representava o grande salto em direção ao seu próprio abismo interior. Thomas foi um buscador do diálogo, de si mesmo e de Deus. As suas palavras algumas vezes eram semelhantes às de um oriental, mas em seu peito ele trazia o crucifixo, e o seu breviário em seu pensamento, os “[…] mantras cristãos e profundo sentido de destino, de estar enfim no meu verdadeiro caminho depois de anos de espera, inquirição e perambular”. Merton foi para o Oriente beber nas antigas fontes de tradição monástica, esta foi a sua escolha, na realidade ele continuava a jornada espiritual que havia abraçado ao entrar para o mosteiro de Getshemani.

 

Por que Merton foi silenciado pelos trapistas quando escreveu sobre a paz durante a Guerra Fria?

A partir da década de 1960, os escritos e preocupações de Merton se voltavam em direção ao mundo, a temática da Guerra Fria e os riscos da guerra nuclear eram temas recorrentes em seus diários e cartas. Naquela época não era comum haver posicionamentos públicos de religiosos, muito menos de monges sobre questões políticas e sociais, até mesmo falar sobre a paz poderia despertar suspeitas de comunismo. A Igreja Católica, nessa ocasião, manifestava seu apoio ao sistema político norte-americano e suas posições em relação ao mundo, daí Merton ter sofrido a censura dos trapistas. O monge passou a viver um período difícil de conflitos internos e com uma necessidade cada vez mais forte de se manifestar contra a guerra e a favor da paz. Ele não se conformava com o silêncio por parte dos católicos, clérigos e leigos quanto ao perigo de uma guerra iminente e continuava a escrever sobre o tema. Em 1966 ele publicou trechos de seus diários com o título Reflexões de um Espectador Culpado, onde manifesta sua angústia diante da violência e da censura, mas principalmente em suas cartas constata-se a sua revolta contra o Abade Superior da Ordem por exigir o seu silêncio.

 

Qual o significado da montanha na vida de Merton e como a visão de Kanchenjunga foi por ele referida em seu Diário da Ásia?

Merton sempre viveu rodeado por montanhas. Desde a sua infância até o final de sua vida, ao todo foram sete: Canigou, The Calvarie, Brooke Hill, The Pasture, Mount Purgatory, Mount Olivet e Kanchenjunga. A sua famosa autobiografia também abarca o mesmo tema, A montanha dos sete patamares, publicada pela primeira vez em 1948, em que ele faz uma alusão à Divina Comédia de Dante Alighieri  (1265-1321) em suas incursões ao mundo espiritual. Sem dúvida esta foi uma presença marcante na vida do místico. Na sua viagem ao Oriente ele foi despertado pela visão “imponente e linda” da sétima montanha Kanchenjunga — a Grande Montanha —, sua consciência expandiu-se ao impacto de sua paradoxal beleza numa rica descrição contida em seu Diário da Ásia: “[…] A total beleza da montanha só aparece quando se concorda com o paradoxo impossível: ela é e não é. Quando nada mais é preciso dizer, a fumaça das ideias se desvanece e a montanha é VISTA”. Merton queria tirar fotografias da montanha sagrada do povo do Himalaia, entretanto ele encontrou muito mais do que isso. No Zen-budismo a montanha é considerada o lugar dos sábios e santos, ao mesmo tempo ela é o próprio corpo de Buda, assim como para Merton a montanha foi seu mestre e ao vê-la “puramente branca” ele ouve uma voz que lhe diz: “[…] Há outro lado da montanha”. O monge então começava a olhar  pelo lado do Oriente.

 

Qual foi a importância e influência do Zen na arte de Merton?

Filho de um casal de artistas, o pai um neozelandês e a mãe uma americana que se encontraram pela primeira vez em um estúdio de pintores em Paris, desde criança Merton estava familiarizado com a arte, suas preocupações e ferramentas. Na sua relação com o desenho, observa-se o jovem Merton, na faculdade, com seus cartuns sexy e cheios de humor. Depois, com sua entrada para o mosteiro, vieram os desenhos de bico de pena e pincéis, retratando a Virgem Maria, monges, crucificação e outros temas piedosos. Na década de 1950, marcada pela vinda do Zen ao Ocidente, o monge iniciou sua admiração pela arte caligráfica Zen, que, segundo ele, revelava uma liberdade não transcendente, que faz alusão ao real, ao que não pode ser dito. De fato, esse momento apenas consolidará o seu gosto estático pela arte asiática, pois, no contato com o amigo de faculdade, o pintor americano Ad Reinhardt, essa preferência já era manifesta.

Merton era especialmente encantado com a pintura paleolítica das cavernas e também com os ícones bizantinos e russos. Segundo ele, os pintores das cavernas não se preocupavam com a composição, nem com a “beleza”, mas sim com a visão direta, pura; no bisão pintado estava a sua força vital singular e peculiar encarnada. Essa visão pura é associada por ele aos ideogramas orientais que representariam esta mesma força, que ele considerou como vida transformada em ato, algo inacessível à reflexão e análise.

Inúmeros foram os seus escritos e poemas alusivos ao Zen. Destaca-se entre eles a longa sequência de 28 seções numeradas, com prólogo e epílogo, meio em prosa, meio em verso, que escreveu em Cables to the Ace, or familiar Liturgies of Misunderstanding. Considerado um antipoema, nele vê-se o discurso de um poeta plenamente afinado com a narrativa Zen, ao falar da forma, vazio, perfeição, impermanência — a coincidência da forma momentânea e o eterno nada. Seu compromisso era com o silêncio e contra os excessos, inclusive de interpretação, tanto na escrita como nos desenhos. Nessa obra, em uma de suas seções, ele fala sobre o nada e a Criação, o deserto e o vazio, onde seu lugar era o nenhum lugar. A partir desse vazio nasce a arte como expressão da visão direta, sem mediações. Esse parece ser o ponto central da arte para Merton e nas expressões zen-budistas.

 

 

Norma Ribeiro Nasser Salomão é psicóloga graduada pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES-JF) e jornalista pela Universidade Federal de Juiz de Fora, bem como especialista e mestre em Ciência da Religião pela mesma universidade. Doutora em Ciência da Religião pelo Programa de Pós-graduação da UFJF.

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