A CONFIANÇA É UM ABANDONO
(ou “a fé costuma faiá”)
Por Sérgio de Sousa
A confiança em Deus é um abandono. Quem se fia ou busca esperanças terrenas, em última análise, não consegue confiar em Deus. Formula para si uma ilusão que é mero simulacro de confiança. Por isso, a misteriosa pedagogia divina passa por retirar as seguranças que colocamos em tudo o que pertence a este mundo. Experimentando este método divino, Santa Teresa de Ávila disse ao Senhor: é por isto que tens tão poucos amigos! A nossa ascese pessoal deveria estar intimamente ligada à esta pedagogia pascal do Senhor. A vida humana é pascal e a vida cristã é cruciforme. O apóstolo, já percebendo cedo esta pedagogia, ensina: “Pois os que são de Jesus Cristo crucificaram a carne, com as paixões e concupiscências.” (Gálatas 5,24). A famosa “noite escura da alma” é a altura máxima desta educação.
Em um certo sentido, a insegurança existencial é um pressuposto para a fé autêntica. Aprender que este mundo é maravilhoso, mas precário e que dele podemos usufruir, mas não teremos nele morada fixa, é essencial para que aprendamos a caminhar. Aprender a caminhar, aliás, é aprender que estar a caminho é nosso estado mais comum nesta terra, somos da espécie ‘homo viator”, viajantes, peregrinos. Aprender que estamos em constante exercício de escolhas, discernimentos e lutas diárias; que a vida é um exercício de liberdade. E que a confiança em Deus não nos retira imediatamente deste estado, embora ansiemos profundamente por isso. Confiar, na maioria das vezes, é estar mergulhado na insegurança, mas sabendo que há Alguém que cuida de tudo e tem controle total da situação. É o caminhar sobre as águas que Pedro experimentou após a chamada de Jesus. Você caminha, mas as águas revoltas sempre estarão por debaixo de seus pés. Pedro confiou, andou, fraquejou, afundou. Mas, no fundo, sabia que o Senhor estaria lá para o salvar. Não à toa, gritou: ““Senhor, salva-me!”. Ao contrário do que diz a canção, a fé costuma faiá, sim. Quem não falha é o Senhor.
“A oração de abandono”, de Charles de Foucauld, pressupõe essa entrega total. Nós perdemos o controle das situações e o entregamos nas mãos de Deus, por isso não tememos nem as falhas, nem o medo, nem o futuro:
Meu Pai,
Eu me abandono a Ti.
Faz de mim
O que te agradar.Não importa o que faças de mim,
Eu te agradeço.
Estou pronto a tudo,
Eu aceito tudo.Tomara que tua vontade
Se faça em mim,
Em todas tuas criaturas,
Eu não desejo nada mais,
Meu Deus.Eu coloco minha alma
Entre tuas mãos.
Eu a te dou, meu Deus,
Com todo o amor
Do meu coração,
Porque eu te amo,
E que é minha necessidade,
De me colocar em tuas mãos
Sem medida,
Com infinita confiança,
Pois Tu és meu Pai.
A insegurança existencial é uma realidade dos nossos tempos. Por isso é um tempo privilegiado para a fé, para o abandono em Deus, para a mística profunda. E é aqui também que a Igreja consegue dialogar com movimentos intelectuais potentes do nosso tempo, como o existencialismo e o ateísmo. Por incrível que pareça, há um amplo campo de diálogo aqui que pode ser compartilhado entre crentes e ateus. A “noite escura da alma” é uma experiência de profunda de fé que dialoga muito de perto com o ateísmo. Quem leu os escritos de Madre Teresa divulgados após a sua morte, que demonstram uma mulher em uma profunda escuridão de alma, sabe disso. Quem leu o impressionante “Não morro, entro na vida”, que reúne os escritos finais de Santa Teresinha (livro de cabeceira de Bernanos), recolhidas por suas irmãs no leito de morte, sabe disso. E todas essas experiências, que testemunham uma paradoxal intimidade de separação, têm como acontecimento fundante o grito de Jesus na cruz: “Meu Deus, por que me abandonaste?” (que poderia ser o grito de um homem propenso ao ateísmo).
O homem em profunda angústia existencial é um homem em busca de sentido. O ateu está em busca de sentido. O homem que questiona sua existência está em busca de sentido. O estado de busca é um estado humano. E, embora a angústia não possa ser classificada como um estado natural do homem, faz parte da caminhada e é companheira do homem em sua jornada sobre a terra. A chamada “Oração de Thomas Merton” talvez seja, neste sentido, o escrito mais profundo e consolador dos nossos tempos, que fala do homem que descobriu o seu lugar de busca, que tem fé em Deus, mas entendeu que sua jornada pessoal será marcada pela tensão do “já e ainda não” e que esse estado de busca é ao lugar da confiança e do abandono total em Deus:
Tu sempre estás comigo — Thomas Merton
Senhor meu Deus,
não tenho idéia de aonde estou indo.
Não vejo o caminho diante de mim.
Não posso saber com certeza onde terminará.
Na verdade, nem sequer, em verdade, me conheço.
E o fato de eu pensar que estou seguindo tua vontade,
não significa que o esteja.
Mas acredito
que o desejo de te agradar te agrada, de fato.
E espero ter esse desejo em tudo que estiver fazendo.
Espero jamais vir a fazer alguma coisa
distante desse desejo.
E sei que, se agir assim,
tu hás de me levar pelo caminho certo,
embora eu possa nada saber sobre o mesmo.
Portanto, hei de confiar sempre em ti,
ainda que eu possa parecer estar perdido
e sob a sombra da morte.
Não hei de temer,
pois tu sempre estás comigo,
e nunca hás de deixar
que eu enfrente meus perigos sozinho.
Fonte: Thomas Merton. Na liberdade da solidão. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 66.
Depois dessa oração, é difícil conseguir escrever mais alguma coisa.