Blog › 24/12/2019

A Boa nova do Natal

 

 

Como o cristão do século XX deve ler os Evangelhos, principalmente a história evangélica do Nascimento de Cristo, Nosso Senhor? Esta não é simplesmente uma questão banal que um autor pode dispensar com algumas generalidades otimistas e comuns. É uma questão que interessa seriamente a todo crente, visto que todo cristão hoje está de certa forma consciente de que os Evangelhos, e particularmente os Evangelhos da Natividade, têm sido questionados como “mitos”. Neste caso, como devemos lê-los? Devemos considerar cuidadosamente cada detalhe, examinar o que os críticos disseram, rejeitar tudo o que eles rejeitaram, guardar apenas o que eles guardaram? Dessa forma nos conformaremos a uma decisão da “ciência”. Mas essas certezas críticas irão nos limitar a uma dieta de baixa proteína de um ou dois fatos autenticados sobre os quais todos devem concordar.

Deve o cristão moderno sustentar sua fé com essa alimentação espartana? Ou deveria ignorar tudo isso, adotar uma posição fundamentalista, afirmar que cada palavra deve ser entendida literalmente e talvez até oferecer justificações apologéticas bem baseadas para todos esses pontos que a fé simples aceitava outrora sem questionamento? Esta, infelizmente, é uma atitude artificial e rígida que, embora pareça se recomendar por sua simplicidade, presta-se a uma distorção da mensagem cristã e, em última análise, revela falta de humildade e de respeito para com realidades difíceis.

É sem dúvida imprudente, para quem não é um especialista nas Escrituras, levantar tais questões intrincadas quando não pode nem mesmo tratá-las tecnicamente. Mas a ideia é que, embora haja toda razão para uma abordagem moderna, crítica e técnica do texto e das formas literárias do Evangelho, e embora devamos ser gratos à contribuição desse estudo científico, ainda permanece para todos, eruditos ou não, um modo superior a todos de se ler – ou de se ouvir – o Evangelho da Natividade: o modo como a Igreja sempre o leu e o ouviu, na celebração da festa de Natal.

A Igreja de início não considerava o Evangelho como uma história estritamente científica, mas como narrativas que querigmáticas que encarnavam a verdade infalível da revelação. Ela não questionava os fatos ou a sinceridade dos que os narravam – era a sua própria sinceridade! Ela não refletia, de maneira consciente de si, sobre as narrativas para determinar até que ponto eram históricas, até que ponto eram poéticas. Estava interessada em uma verdade – a revelação do amor salvífico de Deus pelo homem. A revelação dessa verdade estava ligada à experiência relatada por aqueles que tinham testemunhado o acontecimento ou tinham participado dos primeiros frutos do Espírito dados à comunidade fiel. O Evangelho da Natividade, proclamado hoje à assembleia dos fiéis, torna presente a consciência que a Igreja tem de sua salvação na Palavra encarnada e de sua união com ela. É a sua confissão e a sua celebração desse grande fato.

Diga-se logo que, para entender os Evangelhos nesse sentido, não há por que temer os que os despem dos elementos míticos. Descobriremos, de fato, que os esforços deles, por mais radicais que pareçam e por mais que discordemos em certos pontos, de modo geral tendem a ressaltar precisamente o seguinte: a mensagem do Evangelho é teologicamente relevante, e seu conteúdo é apreendido de maneira válida e verdadeiramente evangélica quando é aceito pelo crente da maneira como foi anunciado e declarado pela Igreja desde o início. De qualquer forma, a tarefa de negação do mito parece ser uma espécie de purificação semântica dessa narrativa.

Visto que é função do monge na Igreja conservar viva essa consciência primitiva da Bíblia, a experiência da leitura da Bíblia na lectio divina e de “ouvi-la” na celebração da liturgia, podemos com segurança tratar nosso assunto como uma “leitura monástica” dos Evangelhos da Natividade, não sem dar à crítica moderna a devida atenção. Isso poderia parecer, à primeira vista, uma tarefa singularmente difícil. Não foram os monges os piores de todos os infratores em se tratando de acrescentar alegoria ao mito?

Há mais de um tipo de “leitura monástica” da Bíblia. Normalmente se pensa na abordagem “monástica” ou “contemplativa” em termos da tradição origenista, que permaneceu, de longe, a mais influente na Idade Média, que foi tratada exaustivamente por frei De Lubac e que está inteiramente esquecida hoje. Esta é a interpretação tipológica, às vezes chamada de “mística” (e às vezes chamada abusivamente de alegórica) das Escrituras. Não é nela que estamos diretamente interessados aqui. Há uma outra abordagem, mais simples, a dos primeiros monges (dos quais nem todos eram origenistas de forma alguma), que simplesmente queriam ouvir a mensagem clara do Evangelho, a palavra de Deus anunciada na Igreja e descobrir Deus tal como ele revelou na sua palavra, e não meramente ter ideias religiosas a respeito da vida e da virtude engenhosamente desfiadas a partir da narrativa sagrada.

Desde o início, a Igreja, e os monges com ela, consideravam a teologia bíblica uma teologia de querigma, narrativa e celebração. O conteúdo teológico da Bíblia é esclarecido acima de tudo pela consciência eclesial do fiel, da própria Igreja como Noiva do Espírito Santo, quando “no Espírito” as palavras inspiradas pelo Espírito são entendidas e recebidas nos corações de todos os que participam da liturgia. As homilias e as exposições dos padres devem ser lidas nesse contexto. É, de fato, nessa atmosfera de proclamação e de liturgia que os próprios textos sagrados tomaram forma. Este é um fato que foi ressaltado precisamente pela crítica formal.

O Evangelho da Natividade é, portanto, não apenas a simpática e reconfortante história de uma Virgem Mãe e de um gracioso bebê deitado na manjedoura, uma história que comove nossos corações e nos traz de volta, uma vez por ano, à nossa própria infância perdida. É uma proclamação solene de um acontecimento que é o ponto crucial de toda a história: a vinda do Messias, o Rei Ungido e Filho de Deus, a Palavra-feita-Carne, armando sua tenda entre nós, não apenas para buscar e salvar o que estava perdido, mas para estabelecer o seu Reino, o Reino escatológico, a manifestação da plenitude dos tempos e o remate da história. É o anúncio de um acontecimento escatológico decisivo, a libertação de todas as formas religiosas fragmentárias e incompletas, a salvação daquilo que Paulo chamou de meros “elementos” da filosofia e da religiões mundanas.

 

Sieger Köder, São Francisco celebra o Natal no povoado de Greccio

 

Com a vinda do Filho do Homem, a Igreja anuncia o remate do plano de Deus:

Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob a Lei, para remir os que estavam sob a Lei, a fim de que recebêssemos a adoção filial (Gl 4, 4-5).

O nascimento do Filho de Deus é, então, como bem compreenderam os autores monásticos da Idade Média, seguindo os Padres da Igreja, o nosso próprio nascimento para uma nova condição, a elevação do homem à filiação divina, a abertura de possibilidades inteiramente novas para a humanidade em Cristo, em Deus e no Homem.

A mensagem do Natal é uma mensagem não apenas de alegria, mas da alegria: a GRANDE ALEGRIA que todos os povos do mundo sempre esperaram sem compreender realmente o que era. É a alegria da realização escatológica que buscamos, no fundo de nossos corações, desde o momento em que somos seres dotados de vida consciente e com capacidade de “realizar” ou “frustrar” nossas vidas ao decidir entre as possibilidades que se apresentam a nós.

O homem nasceu para a vida; isso é revelado não só na Bíblia, mas na própria natureza do homem. Com isso queremos dizer não só que o homem tem um princípio espiritual que é “incorruptível” e “imortal” – sua alma –, mas que o homem todo, como ser capaz de decisão, de amor e de submissão, está orientado para uma perfeição de vida que só se alcança na total doação de si em resposta a uma totalidade de amor além de toda compreensão ou experiência humanas.

Entretanto, para nossa angústia, descobre-se que essa possibilidade natural ilimitada é, na experiência real, tão limitada, tão restrita, tão frustrada e tão ambígua a ponto de produzir, não esperança, mas apenas desespero. De fato, as ambiguidades de nossa esperança humana são as vezes tão pungentes a ponto de reduzirem a própria vida, pode-se pensar, a um total absurdo. Mas agora, no Natal de Cristo, a Grande Alegria é anunciada; nela todas as ambiguidades são deixadas de lado, e todos os homens se confrontam com a possibilidade clara de uma decisão que não só os ajudará a juntar os pedaços de vida destroçadas no fracasso individual, como até dará sentido às vidas de todos os homens de todos os tempo.

Não tenhais medo! Eis que eu vos anuncio uma grande alegria que será para todo o povo: Nasceu-vos hoje um Salvador que é o Cristo Senhor, na cidade de Davi (Lc 2, 10-11).

O Evangelho da Natividade é, portanto, o anúncio da vida. Aquele que veio ao mundo veio “a fim de que tivessem vida” em toda plenitude e abundância, vida sem limitação e sem restrição (Jo 10, 10 ). Santo Irineu, um dos primeiros Padres, construiu sua antropologia sobre o fato de Deus ter se tornado uma criança. Cristo veio ao mundo para recapitular toda a obra da criação e toda a história humana desde Adão. Santo Irineu não inventou essa ideia – tirou-a de São Paulo (Ef 1, 10).

[…]

Portanto, o Evangelho da Natividade permanece como um Evangelho da renovação, e podemos, sem estender demais a ideia, chamá-lo de Evangelho do aggionamento”. A vida nova que a Igreja busca hoje é precisamente esta: a vida de Cristo, a vida “do espírito”, não no sentido “mais espiritualidade”, mas no sentido de ser possuído e ungido pelo Espírito, o Espírito de Cristo, o Espírito Santo.

Encontramos aqui de novo, especialmente no Evangelho de Lucas, a presença do Espírito Santo pairando sobre a Virgem Mãe na nova criação, assim como Ele tinha pairado sobre o abismo da matéria informe, na primeira criação. Embora o Espírito devesse ser dado à Igreja somente por ocasião da Ressurreição e em Pentecostes, já está presente no relato da Natividade feito pela Igreja. Nossa aceitação do dom que Deus faz de Si mesmo a nós em Cristo significa, em última análise, nossa aceitação do Espírito Santo, por quem Cristo nasce em nós, vive em nós, cresce em nós, sofre, morre e ressuscita em nós. É porque recebemos Seu Espírito no batismo e nos sacramentos

que somos capazes de reconhecer Cristo quando a palavra de sua Natividade é proclamada na liturgia da Igreja.

É a vida do Espírito Santo em nós que nos leva a responder “Amém” à oração da Igreja a Cristo. É o próprio Espírito que, tendo feito de nós outros Cristos, clama ao Pai em nós (Rm 8, 14 -16) naquela língua de sons (parrhesia) “livre” e confiante, liberta da Lei do medo. Pois o Espírito nos ensina que, se nascemos com Cristo e morremos com Cristo, somos coerdeiros Dele na Grande Alegria que é a Sua vitória sobre a morte e na Sua mansidão que herdou a terra.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Páginas 232-245

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