Relação com o Brasil

O AMIGO DO BRASIL

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Ir. Maria Emmanuel de Souza e Silva, OSB (1902-2002)

Trecho do livro THOMAS MERTON – o homem que aprendeu a ser feliz, de Irmã Maria Emmanuel de Souza e Silva, OSB

Thomas Merton amou de modo muito especial o Brasil. Em suas cartas dizia-nos: ”I pray for you faithfully at Mass everyday, Perhaps that is because my thoughts turn so often to Brazil, a country I love so much“, Em outra ocasião: “Mande-me notícias do Brasil.  I love the Brazilian people”.  Está preparando um trabalho sobre cultos messiânicos, proféticos e apocalípticos na África, Melanésia e América Latina, onde dizia estar encontrando coisas fantasticamente escatológicas. E pediu-nos que lhe enviássemos o que fosse possível sobre este assumo em relação ao Brasil. Graças à gentileza de D. Abade Timóteo, na Bahia, e à de Nieta Garcia de Souza, que trabalha na UNESCO, foi fácil corresponder ao seu desejo. Queria muito ler Os Sertões mas não encontrava tempo. Um noviço seu, brasileiro, hoje Father Bede, muito contribuiu para a compreensão que Merton tinha do ambiente brasileiro. Foi este que lhe ensinou o português.

Um dia, num P.S., escreve-nos: “I have Brazilian music. Do you play ‘Bossa Nova’?” Por intermédio de uma amiga, que o recebeu de Monsenhor Marcelo Carvalheira foi-lhe enviado então o disco O Evangelho em ritmo brasileiro. Merton logo respondeu dizendo que o tinham tocado duas vezes apenas, pois no eremitério não havia toca-discos. Mas uma segunda vez já o cantava com os “nordestinos”. Pediu-nos, certa vez, um livro de Sérgio Buarque de Hollanda: Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento do Brasil. Grande foi sua alegria ao receber o volume enviado pelo próprio autor, que se encontrava nos Estados Unidos.

Temos algumas cartas onde ele menciona com entusiasmo Jorge de Lima. Pretendia traduzir alguns de seus poemas para uma antologia. Sobretudo encantava-o Mira Coeli. Sentia afinidade com nosso poeta. Em 1963 escreveu-nos: “Ainda não consegui tempo para traduzir Jorge de Lima, embora há três anos que estou me prometendo essa alegria”. Sabia também apreciar Manoel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Quando Manoel Bandeira declarou-nos achar impossível traduzir os poemas de Merton, como lhe havíamos sugerido, “pois cada um teria de ser uma nova criação”, Merton nos escreveu: “A resposta de Manoel Bandeira bem mostra ser ele um verdadeiro poeta”. Achava Guimarães Rosa espetacular. Teria gostado de conversar com ele. O artigo de D. Marcos Barbosa, OSB, sobre Rosa, publicado no Jornal do Brasil, tocou-o profundamente. E como ele sabia mostrar-se grato! Não era “efusivo”, apesar da natureza exuberante; sabia ser discreto, mas cheio de delicadeza e de calor humano. “Aprecio sempre muito suas cartas” (1964). “Elas me dão um contato vivo e quente com um país que amo e pelo o qual rezo agora como muita preocupação. Penso muito em meus amigos daí e em todos os brasileiros”. Enviava sempre recados e lembranças para cada um. E pedia notícias de um e de outro. Mostrava-se extremamente agradecido pelos prefácios escritos para seus livros, “Sinto remorso ao ver o tempo que perdem comigo quando tem coisas muito mais importantes a fazer… Diga-lhes isso e minha gratidão. Quanta generosidade!”

 

(foto gentilmente cedida pelo CAALL - Centro Alceu Amoroso Lima pela Liberdade)

Thomas Merton recebe visita do intelectual brasileiro Alceu Amoroso Lima. Dr. Alceu introduziu autores católicos de outros países no Brasil. A partir da década de 1950, Merton se torna o interlocutor mais frequente ao propor saídas criativas para a crise dos valores tradicionais da Igreja frente a um mundo cada vez mais secularizado.

Em maio de 1964 escrevia: “Não sei de outro país que tenha chegado a traduzir tanto de tudo o que tenho escrito. You are most produetive. Agradeça por mim”. E aí vem a lista de nomes: Dom Basílio, OSB, Dom Timóteo, OSB, Alceu Amoroso Lima, os franciscanos da Vozes, a Agir, Elza Bebiano, Lilian May, o padre e poeta Armindo Trevisan, etc. Várias vezes celebrava a missa pelos amigos brasileiros.

Merton desejava vir ao Brasil. Chegou a pensar em lançar a ideia de uma fundação em Curitiba em 1956. “Pertenço à solidão, mas é um grande sacrifício para mim nada poder fazer de concreto para ajudar a renovação da vida monástica na América Latina” (1963). “Lembro-me com frequência do Mosteiro de Serra Clara. As notícias que me dá de lá são interessantes e muito, também, as de Olinda” (1964).

Numa de suas cartas de 1963, Frather Louis dizia-se “encantado com a opinião de seus amigos de que ‘tenho cara de sul-ameticano’. Sinto-me muito latino-americano. Sempre mantive que meus poemas são melhores em espanhol que em inglês. Tenho não só a cara de um sul-americano, mas também o coração. Acredito firmemente que, sem a América do Sul, não há América nenhuma. Como os Estados Unidos jamais conseguiram ver isso é que vai haver problemas sérios no futuro deste país”.

Qual não foi nossa alegria ao recebermos, em março de 1968, numa carta em que mais uma vez indicava o dia em que celebraria missa por nós e por todos os seus amigos brasileiros, essa boa notícia: “É possível que, com a autorização de nosso jovem Abade, eu possa visitar o Brasil… Mas se isso puder ser feito de maneira muito discreta, sem publicidade e sem que eu tenha de falar em público, etc. É possível que eu possa viajar para visitar comunidades e encontrar-me com pessoas, sem no entanto envolver-me em nada de público. Isso depende, porém, de muitas outras coisas. Reze por essas intenções”.

Enquanto não vinha, Merton punha-nos em contato com seus amigos dos Estados Unidos e de outros países. Sempre com o fim de melhor compreensão e ajuda mútua. “Voluntários e voluntárias do Papa”, cristãos engajados, poetas, literatos como ele atraídos pelo Brasil. Nem todos eram católicos. Até hoje essas pessoas sentem-se ligadas ao Brasil e a nós pelos laços criados por Merton que lhes dá sentido e solidez.

De um desses amigos, jovem professor de letras inglesas na Universidade de North Carolina, George Lensing Jr., que, como voluntário do Papa, passou dois anos no Brasil, recebendo as seguintes linhas transcritas da Revue de Littérature Comparée, Avril-Juin 1967: Some comments on the Portuguese language by Thomas Merton, american poet and novelist:

“O português é uma língua que me encanta e tornou-se a que mais amo, é, para mim uma língua luminosa e cheia de calor humano. É uma das mais humanas, ricamente expressiva e, a seu modo, inocente. Talvez eu diga isso falando subjetivamente, pois não li tudo que pudesse esclarecer-me em certo sentido. Parece-me, entretanto, que o português ainda não foi empregado para as barbaridades que se leem em alemão, inglês, francês ou espanhol. E tenho muito amor aos brasileiros. Estou sempre querendo traduzir Jorge de Lima. Tenho os poemas de Manoel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e vários outros. Gosto deles e os leio todos”.

⁃ “Os poetas brasileiros: todo um mundo novo! Antes de mais nada, o português é uma língua maravilhosa para a poesia. É uma língua de admiração, inocência, alegria, cheia de calor humano e, portanto, de humour. O humor que é inseparável do amor que ri ao ver a singularidade de cada ser individual – não por ser ele cômico ou desprezível, mas porque é singular, único.

⁃ “…Acho os poetas brasileiros diferentes dos outros latinos-americanos. O gênio ameno, o amor franciscano à vida, o respeito por todo ser vivo… Não há nos brasileiros nenhuma dureza, nenhuma atitude amarga, artificial, doutrinadora que encontramos em cantos poetas hispano-americanos, ainda que admiráveis… Que diferença entre Manoel Bandeira, ou Jorge de Lima, cujo amor é pelos homens, e alguns dos poetas marxistas escrevendo em espanhol cujo amor é pela causa”.

 

ARQUIVO 27/09/79 - MARCSO BARBOSA (DOM) - FOTO:reprodução/ AE A INDICACAO DO CREDITO E OBRIGATORIO, CONFORME DISPOE A LEI NR. 9.610, DE 19.02.98, ARTIGO 79. FICA DESDE JA RESSALVADO QUE, EM SE TRATANDO DE PESSOAS FISICAS, QUAISQUER OBJETOS OU OBRAS E EVENTUALMENTE RETRATADOS NAS FOTOGRAFIAS ADQUIRIDAS, O COMPRADOR DEVERA PROVIDENCIAR DIRETAMENTE SUAS RESPECTIVAS AUTORIZACOES, NAO SE RESPONSABILIZANDO A AGENCIA ESTADO POR QUALQUER VIOLACAO DE DIREITO DE IMAGEM DO CONTEUDO DA FOTO. QUALQUER OUTRA VEICULACAO OU REUTILIZACAO DESSA IMAGEM DEVERA SER COMUNICADA. AGENCIA ESTADO (0XX11) 856.2079 foto@agestado.com.br

Dom Marcos Barbosa, OSB (Reprodução/AE)

Foi na ocasião do Congresso Eucarístico Internacional, realizado no Rio de Janeiro, que nos veio, pela primeira vez, a ideia de escrever a Thomas Merton. Dom Marcos Barbosa, OSB, autor do hino premiado, enviou-nos uma cópia. Achamos que seria interessante vê-lo traduzido em várias línguas para os peregrinos. Dom Marcos concordou. Mandamos a Frather Louis, não sem alguma hesitação (pois nem sabíamos se ele receberia a carta, nem se lhe permitiriam aceder ao pedido), o original, a tradução em inglês e a música. Arriscamos um endereço, mais ou menos composto com as indicações na autobiografia, E esperamos sem muita convicção. Duas semanas mais tarde chegou a tradução naturalmente muito simples e bela. Acompanhava-a uma carta alegre, delicadíssima e fervorosa: “que alegria para um padre, que quer viver unicamente para Cristo, traduzir um hino em louvor a Eucaristia… E como recusar um pedido vindo de um claustro?”   Nós lhe havíamos dito, não sem alguma impertinência, que custamos a acreditar na possibilidade de haver trapistas contemplativos americanos, mas que depois da leitura de A montanha dos sete patamares, nos convencemos da realidade do fato. A isto Father Louis respondeu com sense of humour. Pediu orações e prometeu as dele para o Congresso, etc. Depois disso, foram chegando seus livros e começamos a traduzi-los. A Editora Vozes demonstrou grande interesse pelos escritos desse extraordinário convertido e mestre de vida espiritual. E também a Agir. E assim foi que, por força das circunstâncias, mantivemos uma correspondência frequente com ele.

Enviava-nos com simplicidade retratos seus, da ermida, dos seus ícones. Eram sempre artigos dele ou sobre ele, poemas. Tudo, enfim, que poderia ajudar ou interessar aos amigos brasileiros. E era sempre “with warm friendship”, ou “very cordially, and with every possible blessing”, e ainda, “with all my gratitude and good wishs in the Spirit”. E tantas outras expressões de sincera amizade no Senhor. Às vezes, devido à pressa, pedia: “excuse my crazy handwritingand please overlook mistakes”9.

Ao recebermos a notícia de sua morte, não demos nenhum crédito. Quantas vezes nos havia ele avisado: “Não acredite nos boatos a meu respeito. Cada seis meses inventam que saí do mosteiro, virei protestante, etc. Mas meu lugar é aqui na solidão e aqui na solidão espero morrer”. Somente depois de passados vários dias, com a confirmação da notícia recebida da Abadia de Gethsemani, com vários pormenores e outras cartas de amigos de Merton nos Estados Unidos, é que não foi mais possível duvidar. Chegou-nos até um retrato dele a cores, de Bancoc, na paz solene da morte.

Entretanto, sentimos a realidade dessa palavra de Chesterton, quando um acidente roubou-lhe repentinamente o contato sensível com um ser querido: “ele não está ausente, está presente de outro modo, mais íntimo ainda e mais profundo. Presente somewhere (em algum lugar)”. Só vinte anos mais tarde é que Chesterton entrou para a Igreja Católica. Temos pensado também no gesto do velho dominicano, Fatber Vincent Mac Nabb, grande amigo e admirador de Chesterton. Era-lhe grato por tudo o que dera de seu tempo e talentos à Igreja. Diante do corpo do grande escritor convertido, ajoelhou-se e, pegando na pena que tanto serviu à Verdade, beijou-a com reverente emoção. Quantos gostariam de fazer o mesmo com a pena de Thomas Merton! (Aliás, usava esferográfica ou lápis-tinta de várias cores, pois tinha horror aos borrões).